Público - 4 Ago 03

A Guerra Civil à Portuguesa
Por JOÃO JOSÉ BRANDÃO FERREIRA

"O público, como todos os soberanos, como os reis, os povos e as mulheres, não gosta que se lhes diga a verdade".

Alexandre Dumas

Portugal ao longo dos seus quase nove séculos de existência livre e independente (parece que nos deixámos de preocupar com isto...), teve que travar numerosas guerras e combates.

Fomos invadidos 18 vezes por leoneses, castelhanos e espanhóis, (também invadimos várias vezes...) três vezes pelos franceses, guerreámos turcos e mouros por séculos; fizemos frente a ingleses, franceses, holandeses, dinamarqueses, alemães e até austríacos (imagine-se!), um pouco por todo o mundo, além de operações de combate, de pacificação e soberania com dezenas e dezenas de entidades gentílicas. Foi raro o ano em que, nos últimos seis séculos não tivemos que levar a cabo uma qualquer campanha nos quatro continentes onde a diáspora lusitana nos levou. Pior do que isto, tivemos ainda, por desentendimentos próprios, conflitos sangrentos entre a família portuguesa: são célebres as intervenções da Rainha Santa Isabel para pôr termo à luta entre a hoste real e a de seu filho, o futuro D. Afonso IV; o desentendimento da família real a seguir à morte de D. Duarte, que culminou com o trágico desfecho de Alfarrobeira, em 1449; as perseguições internas contra os judeus e os hereges que marcaram todo o século XVII e XVIII; a guerra da Patuleia em 1847; os confrontos sociais que levaram à queda da Monarquia, em 1910, seguida das incursões monárquicas que se sucederam até 1919 e cujas consequências só terminaram (não de vez), em 1926. E, sobretudo, por ter sido a mais grave e sanguinolenta, a guerra que opôs liberais e miguelistas entre 1828 e 1834. Em 1975 o país esteve novamente à beira de uma confrontação grave, evitada "in extremis" a 25 de Novembro.

Nos últimos 25 anos temos vivido, aparentemente, em paz - estádio a que os mais optimistas políticos e intelectuais do país, supõem ser um dado adquirido para todo o sempre, apesar das Forças Armadas Portuguesas e de Segurança, já terem sido chamadas a intervir, no Kosovo, na Bósnia, na Guiné-Bissau, em Timor, na Macedónia, no Afeganistão e agora no Iraque, etc..

E dizemos aparentemente, porque, de facto, temos vivido uma espécie de guerra civil de contornos diferentes. Queremo-nos referir, concretamente, a verdadeira chacina a que a população está sujeita, por causa dos fogos, dos acidentes ferroviários, de viação, aéreos, dos acidentes no trabalho, dos afogamentos nas praias e nos rios e sabemos lá que mais. Destes os mais mediáticos e mais mortíferos são os acidentes com veículos automóveis, motociclos, pesados e atropelamentos de peões. Neste momento devemos ter o dobro dos mortos e o triplo dos feridos, por ano, do que tínhamos em igual período nas três frentes de combate em África entre 1961 e 1975! Estamos mesmo em crer que a única maneira que está vedada aos portugueses morrerem hoje em dia, é em combate!...

A situação tem piorado de ano para ano, apesar de todas as campanhas de educação e de prevenção lançadas e de todos os alertas que, de uma forma sistemática de há anos a esta parte, a comunicação social tem efectuado.

Há poucos dias choveu num domingo e só na zona de Lisboa registaram-se, de imediato, cerca de 50 acidentes. Chegámos a ouvir dizer que a culpa é da "limpeza deficiente" das estradas...

Face à catástrofe inventam-se as desculpas mais inverosímeis e continua a bater-se na falta de sinalização, no mau estado das estradas, etc., mas todos nós sabemos que tais problemas têm sido de há muito, melhorados ou resolvidos.

A verdadeira causa, a causa número um de todo este descalabro chama-se indisciplina e enquanto isto não for assumido não se resolverá nada, tudo o que se fizer será apenas um paliativo, porque se estarão apenas a atacar efeitos e não causas. Uma atitude, aliás, que os portugueses muito prezam.

Perguntarão os leitores, porque é que então ninguém se dispõe a atacar esta "causa". Diremos que por uma razão ponderosa acima de todas: o assunto tem de ser resolvido pelos políticos, nomeadamente, que têm responsabilidades governativas e legislativas e como tal vai embicar com a frase do Alexandre Dumas que encima este escrito. Ora dizer a verdade às pessoas vai indispô-las e se eu estiver indisposto com um político não voto nele. Ora como o sistema está baseado nos votos... julgo que não necessitamos dizer mais nada.  Mas tem mais, se nós quisermos aprofundar a questão teremos que ir às causas da indisciplina reinante - que atravessa toda a sociedade portuguesa -, e já não é só indisciplina é também a badalhoquice -, então teremos verdadeiramente um cenário que queima as mãos que se farta. E como last but not the least, para acabar com este estado de coisas, dado que está provado à saciedade que campanhas de boas intenções não chegam, é preciso reganhar autoridade, voltar a hierarquizar a sociedade, organizar a sério e impôr a Ordem no cumprimento das leis vigentes que têm que ser revistas à luz da idiossincrasia que temos e não da que umas quantas luminárias gostariam que tivéssemos. Face ao exposto, fácil é constatar que não é fácil embora não seja impossível fazê-lo (e é até urgente), mas não se vislumbra que se venha a fazer tão cedo. E, exposto isto não é uma opinião subjectiva, é factual e baseia-se na actuação dos órgãos de soberania, na actividade dos partidos e na falta generalizada de intervenção cívica das instituições e dos cidadãos.

Deste modo a "guerra civil" vai continuar com o seu consequente rol de mortos, estropiados e prejuízos sem fim.

Não há crise. A malta parece que gosta.

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