Público - 15 Ago 04
Mais Dinheiro para a Educação?
Por M.
FÁTIMA BONIFÁCIO
Engº. Sócrates
renovou recentemente, à laia de manifesto da sua candidatura, a
promessa de que com ele o país investirá a fundo na Educação (a isto
se resumia o essencial da mensagem). Uma promessa que em Portugal
tem sido feita, com intermitências, de há perto de duzentos anos a
esta parte e que Guterres tentou erigir em desígnio digno de
concitar uma "paixão" nacional. Injectou-se mais dinheiro no
"sistema", promoveu-se a modernização pedagógica, reformularam-se os
programas e refizeram-se os manuais. Reformas e dinheiro de nada
serviram.
De há anos a
esta parte, com assinalável regularidade, o país toma conhecimento
de números que revelam o clamoroso fracasso da Escola. Ainda agora
fomos escandalizados pela notícia de que metade dos alunos do
secundário chumba nos exames nacionais do 12º ano. Desgraçadamente,
este resultado encobre a péssima qualidade dos alunos que conseguem
passar, chegam à Universidade quase analfabetos e saem de lá pouco
melhor do que entraram. Há 25 anos que sou professora de História na
Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de
Lisboa. Há 25 anos que observo, de ano para ano, a degradação da
qualidade dos estudantes, e há 25 anos que vão sendo piores as notas
que me vejo obrigada a dar, apesar de a minha complacência e
tolerância terem aumentado com a idade e a sensata tendência para a
acomodação que ela gera.
Convenci-me
ultimamente de que o panorama não melhoraria significativamente nem
que os programas e os professores fossem todos excelentes. Não há
assunto nem eloquência capazes de obrar o milagre de despertar a
atenção e a curiosidade de uma massa estudantil inteiramente
desinteressada em aprender e unicamente apostada em "passar". A
grande maioria dos alunos limita-se a tirar apontamentos nas aulas
de forma totalmente acéfala, e os disparates que escrevem nos testes
revelam uma total incompreensão das matérias mais simples e uma
total incapacidade de exporem com sequência e clareza as ideias mais
elementares ou de narrarem com nexo os factos mais básicos. Não
percebem o que ouvem e menos ainda o que lêem. De resto, salvo uma
ou outra excepção honrosa, lêem pouco ou mesmo nada. Como suponho
que fazem também os meus colegas, trato de me ajustar à
circunstância. Isto significa baixar o nível das aulas até ao ponto
em que poderíamos estar numa qualquer turma do secundário.
Não sei que
"competências" estes alunos adquiriram no liceu, mas sei que não
adquiriram o mínimo de conhecimentos que lhes permitiriam ascender a
um patamar de aprendizagem superior. Ensinar História na
Universidade tornou-se quase impossível, porque em vez disso é
necessário familiarizar os alunos com as matérias, os factos, os
nomes, as datas e as noções ou conceitos a partir dos quais poderiam
então começar a aprender História e a discernir entre as várias
maneiras de a escrever. Acresce que não sabem português: o
vocabulário de que dispõem é de uma pobreza confrangedora, e os
erros de ortografia e gramática são de molde a arrepiar. Sendo a
história uma disciplina literária, não admira que o desastre seja
quase geral, como aconteceria ao engenheiro que pretendesse
construir uma ponte ou um prédio sem saber física ou matemática.
Confrontados
com a sua ignorância, poderíamos supor que os alunos, chegados à
Universidade, se esforçassem por supri-la através da aplicação
redobrada ao trabalho. Não espanta que tal não aconteça: não têm
curiosidade intelectual e por isso não têm interesse em aprender; e
o liceu não lhes inculcou hábitos de disciplina nem de esforço.
O estudante
universitário - como o do liceu - tem antes de mais direito ao seu
lazer. Estudará, ou não, no tempo que sobrar. Pela Universidade
arrasta-se hoje uma preguiça generalizada que torna a docência um
exercício frustrante e deprimente. Invejo colegas que têm prazer em
declamar perante auditórios que não estão interessados no que dizem
nem captam metade do que ouvem; que raramente levantam uma dúvida
pertinente; que quase nunca suscitam um problema interessante. A
docilidade dos estudantes de hoje só espanta quem não saiba que ela
é a máscara de uma apatia e ignorância que não lhes permitem
interrogar e muito menos debater. Em tempos tive alunos que são hoje
meus colegas e académicos brilhantes. Essa raça desapareceu.
Não se pense
que exagero. Os estudantes chegam hoje em dia à Universidade sem
quaisquer hábitos de disciplina e de trabalho. A simples ideia de
que aprender custa esforço e sacrifício, de que fazer um curso
superior é algo que absorve e ocupa a tempo inteiro, é impensável.
Neste aspecto, como noutros, a Universidade é um mero prolongamento
do Secundário: o prolongamento de um imenso recreio que, por seu
turno, já prolongava o jardim infantil em que se converteu o Ensino
Básico. Desde a mais tenra idade, as crianças são educadas e
formadas na noção errónea, e nefasta, de que aprender pode e deve
ser tão lúdico como jogar à bola na praia ou saltar à corda nos
intervalos. Chegadas ao Liceu, deparam com a mesma filosofia
pedagógica. As matérias têm que ser interessantes, apelativas,
divertidas, ensinadas de maneira que se não dê por ela e aprendidas
de maneira que não dê trabalho. As aulas têm que ser animadas,
participadas, de modo que a atenção se prenda sem esforço. As
avaliações não podem ser traumatizantes: são sempre imperfeitas e,
portanto, muito, muito relativas, tão relativas que até mesmo um
péssimo aluno pode sempre ser desculpado. Em suma: as crianças, os
adolescentes e os jovens adultos não podem ser maçados e qualquer
embate com as duras realidades da vida lhes deve ser poupado.
De facto, tudo
começa com a cultura de adulação da criança que domina a sociedade
ocidental contemporânea e que não passa, como tantas outras
características dela, da degradante e ridícula pieguice em que
culminou a "Sensibilidade" descoberta na segunda metade do século
XVIII. Tudo o que diz respeito às crianças - o seu bem-estar, a sua
saúde, a sua protecção, o seu lazer - suscita imediatamente a
atenção desvelada de um público adulto que erigiu as crianças no
centro do mundo e entende, pelo menos "teoricamente", que tudo se
deve subordinar aos seus interesses e às suas presumidas
necessidades. (Felizmente já temos um ministério da Criança.)
Nas famílias,
as crianças tornaram-se geralmente pequenos déspotas inteiramente
desprovidos de quaisquer hábitos de obediência ou elementar respeito
pelos pais e os mais velhos, que no entanto tudo fazem e sacrificam
para que os rebentos possam gozar de condições ideais para
desenvolverem livremente as suas promissoras personalidades. De tão
mimadas, as crianças crescem, desde o berço, com a justificada
sensação de que na vida só há brincadeira e direitos e de que tudo
lhes é devido. Se por acaso algumas revelam um temperamento mais
difícil, não se aplicam os bárbaros remédios clássicos.
Arranja-se-lhes acompanhamento psicológico a fim de tentar, sem
traumas nem violências, torná-las mais cordatas sem contudo
prejudicar nem levemente o seu "crescimento natural". A
"personalidade" da criança é sagrada e todo o respeito por ela é
pouco.
Depois do
jardim-escola, onde as educadoras de infância as ajudam a brincar,
chegam ao primeiro ciclo do Básico, onde os professores se esforçam
por que as aulas se pareçam o mais possível com recreios. Segue-se o
antigo liceu. Pela primeira vez vislumbram - mas não mais do que
vislumbram - a necessidade de refrearem os seus ímpetos e de se
conformarem com um mínimo de disciplina e aplicação. Os trabalhos de
casa são vistos, pelos alunos e por muitos pais, como um fardo cruel
para crianças ou adolescentes que já passaram várias horas na escola
sujeitos a constrangimentos "stressantes". É tarde para se
habituarem. Trabalhar é a última das prioridades para adolescentes
confrontados com mil e uma solicitações divertidas que os distraem
das suas obrigações, a que não dão importância.
Portugal é o
país europeu com mais alunos com dificuldade em aguentar o alegado
"stress" escolar. O esforço de estudar é demasiado duro; a
concentração que se exige é esgotante... Quando chegam ao 12º ano,
metade dos alunos chumba. A metade que consegue passar, chega à
Universidade e não é capaz de ler um livro do princípio ao fim.
Grande parte desiste dos cursos depois de se ter arrastado anos pelo
bar, pelos corredores e pelas salas. Quase todos os que chegam ao
fim saem da Universidade tão ignorantes como lá entraram. Continuam
a não escrever português e sem conseguir interpretar um texto. Mas
são os senhores doutores de que sairão os quadros do país e os
futuros professores do liceu. Não há dinheiro que resolva o
problema. Historiadora
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