Público - 01 Ago 05

 

Uma teoria singular: "A singularidade da escola pública"

Mário Pinto

 

1.Vital Moreira nomeou-me no seu blogue para me acusar de ignorância em matéria de direito constitucional - comparável (diz ele) à sua ignorância em teologia católica. Começo por achar mal a comparação. Eu não sou teólogo católico; e ele sabe bastante de doutrina anti-católica. Vital Moreira tem, como é público e notório, um "parti pris" contra a Igreja Católica; e quer aproveitar para insinuar uma confusão "gozona" entre os meus argumentos em matéria de liberdade de educação e a minha confissão religiosa. De balde. Não é por aí que se vai escapar. Proponho que deixe em paz a minha pertença religiosa; vamos à questão da liberdade de ensino. Prometo em troca não o reduzir à sua pertença anti-católica.
Mas, independentemente desta "blague" comparativa, pergunto: poderá um constitucionalista, sendo aliás também professor, em lugar de argumentar com um outro jurista bastar-se com acusá-lo de ignorante em constitucional? Desse modo invocando implicitamente o argumento da sua autoridade pessoal ou um privilégio de especialistas? Não me ficaria bem vangloriar-me do que sei de constitucional. Mas a verdade é que não é esta a primeira vez que discordo pública e honrosamente de Vital Moreira em matérias de alcance constitucional. Quer que lhe lembre outros tópicos de discordância, para ver se se justifica a sua arrogância?

2. Para além do ataque pessoal que já referi, Vital Moreira quis ainda brincar com o argumento que, a terminar, avancei no meu artigo anterior, da competição desleal do Estado (através do monopólio da escola pública) contra a iniciativa privada. Esta, como se sabe, e enquanto expressão incontornável das liberdades fundamentais, não se limita à economia; e reveste a maior importância nas áreas comunitárias e culturais. Por sinal, exactamente na área educativa, quer a Declaração Universal dos Direitos do Homem quer a Constituição portuguesa atribuem aos pais (e não à sociedade nem ao Estado) o direito prioritário da educação dos filhos - contrariamente à tese platónica, depois jacobina, depois nazi-soviética e depois do actual presidente da CONFAP.
A brincadeira de Vital Moreira foi comparar a situação a que me referi com um montão de outras situações, fazendo uma "molhada" heteróclita de analogias que não é permitida a um jurista, embora possa luzir como retórica política.
Tenho plena consciência e advertência do que disse, e do modo como disse. Afirmo sem qualquer hesitação que há funções que o Estado desempenha a título de necessário e legítimo monopólio do exercício de poderes soberanos "sobre os súbditos", como é o caso da segurança e ordem pública e da justiça pública. No âmbito das funções soberanas do Estado, o Estado de direito exclui que a ordem pública seja imposta e garantida por privados; ou que estes exerçam justiça privada. Portanto, aqui, e por definição, o Estado não faz concorrência aos privados.

3. Mas há outras funções que o Estado desempenha a título de subsidiariedade. Vital Moreira, num artigo no PÚBLICO, já uma vez nos mostrou que tem esta noção, que vem em todos os manuais. É o caso típico das funções de bem-estar do Estado social - afirmo-o sem hesitação. Nesta área, o Estado não opera para exercer um poder de soberania, mas sim para prestar serviços às liberdades e direitos fundamentais dos cidadãos, a título de subsidiariedade. Com o único fim de garantir uma igualdade de oportunidades, para que os cidadãos possam exercer as suas liberdades e ficarem ao abrigo de riscos sociais evitáveis. Entra aqui o caso da educação. Nestas áreas, o Estado faz concorrência aos privados porque entra no domínio do exercício das liberdades privadas de iniciativa, pessoais e colectivas. Que dúvida? Se essa concorrência for supletiva, pela positiva e pela negativa, será virtuosa; se for monopolista, será perversa.
Aliás, e a propósito das acumulações de professores no ensino e até em órgãos científicos, recordo-me de Vital Moreira defender que existe conflito de interesses entre escolas públicas e privadas. Quer dizer: há conflito de interesses (legítimos) e não há concorrência?
Se a teoria constitucional de Vital Moreira é que, faça o Estado o que fizer, nunca faz concorrência desleal aos privados e à sociedade civil, direi então que a minha não é essa. A legalidade, até mesmo a legalidade constitucional, submete-se ao respeito e justa promoção das liberdades fundamentais, bem como aos princípios do Estado de direito democrático. O Estado tem limites - foi esta a grande conquista da modernidade contra o absolutismo (político) e o mercantilismo (económico). E não pode por isso criar monopólios (monopólios não são apenas os monopólios jurídicos, será preciso dizer isto?) em tudo o que "lhe" aprouver. Mormente amarrando-se à letra de constituições que foram aprovadas em condições discutíveis. Não somos escravos da letra. Nem o espírito fica historicamente petrificado. Os limites do Estado, em conexão com as suas funções, são uma questão sempre em aberto e em progresso.

4. Vital Moreira escreveu um artigo no PÚBLICO defendendo "a singularidade da escola pública" - que consistiria em ser escola única e obrigatória como prestação devida ao direito social dos cidadãos à educação, no nosso Estado social. Eis uma teoria singular. A única singularidade digna de nota que em Portugal se pode afirmar para a escola pública é que ela tem uma singular "capitis diminutio", no nº 2 do art. 43º da Constituição, que diz assim: "o Estado não pode programar a educação e a cultura segundo quaisquer directrizes filosóficas, estética, políticas, ideológicas ou religiosas".
Pergunta-se, então: como é que, de uma escola assim limitada de opções em domínios fundamentais para um qualquer projecto educativo de escola, Vital consegue tirar a ideia de que "a escola pública surge portanto ao serviço de um projecto de universalização da educação"? Como pode convencer-nos de que, "diferentemente do que sucede noutros serviços públicos, em que as prestações são "fungíveis", sendo indiferente a natureza pública ou privada do estabelecimento que as executa (por exemplo, uma intervenção cirúrgica), no ensino a questão essencial está justamente na mais-valia inerente à escola pública em termos de liberdade individual de aprender e ensinar, de pluralismo, de neutralidade ideológica e confessional, de coabitação e integração social"? É então esta a "liberdade de aprender e de ensinar" que está garantida na nossa Constituição como liberdade fundamental pessoal? Valha-nos Deus. Afinal ainda falta cair mais um muro de Berlim. Professor universitário

 

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