Expresso - 9 de Dezembro

O portfólio dos «aprendentes» 

Vasco Graça Moura

«Em França, a 'transversalidade' da língua também obriga os alunos do secundário a lerem uma série de livros por ano, por se considerar essencial na aprendizagem o contacto intensivo com o património literário de todas as épocas, em Portugal a APP ri desse nefasto conservadorismo, esperando que eles se precipitem vorazmente sobre relatórios, artigos científicos e dissertações e que aprendam muito mais com isso do que com um poema de Cesário ou um romance de Camilo...»

A DIRECÇÃO da Associação de Professores de Português reagiu enfadada ao meu artigo de 3/10/01.

Citei Carlos Ceia, que diz não haver um único professor de Literatura na direcção da APP.

A APP responde que os seus membros são todos licenciados (espera-se que sim), tendo-se quatro especializado em Avaliação Educativa, Didáctica das Línguas, Educação Intercultural e Teoria da Literatura, e que a respectiva formação lhes exige «conhecimentos de Língua, de Literatura e de Cultura Portuguesas» (também se espera que sim).

Só não contesta que nenhum deles seja professor de Literatura...

Falei da reforma do ensino em França e lamentei que, entre nós, as crianças não tivessem de ler 10 livros por ano a partir dos oito anos de idade.

Perora a APP que, por cá, as crianças trabalham «com fábulas, contos de fadas, histórias de aventuras, poesia e textos dramáticos».

Só escamoteia a questão de as crianças deverem habituar-se a ler um certo número de livros por ano.

Verberei a irresponsabilidade que campeia no nosso ensino e afirmei que a nossa política de educação faz tábua-rasa do património vivo da língua com o apoio da APP.

A APP lamenta o tratamento leviano de assuntos cujos contornos eu desconhecerei e diz que «não está satisfeita com a situação do Português, pelo que considera urgente uma reforma curricular!»

Fui ver esses portentosos contornos, isto é, os pareceres da APP na Internet. Entre eles, um, de Abril de 2001, sobre o projecto de programa de literaturas de língua portuguesa.

A sua leitura é tão penosamente rebarbativa que garante o céu a quem a fizer. Mas entrevê-se que a veleidade de insistir no património literário leva à conclusão de não haver «uma adequada articulação entre as finalidades, as competências, os objectivos, os conteúdos programáticos, a avaliação e os recursos, o que vai centrar a gestão curricular no ensino e não nas aprendizagens». C’os diabos, já me sinto mais habilitado em matéria de contornos...

Noutro parecer, de Setembro de 2001 quanto à proposta de programas de língua portuguesa no ensino secundário, que merece a concordância genérica da APP, li o seguinte:

«A redução e flexibilização do ‘corpus’ literário é um dos aspectos que mais contribui para a exequibilidade desta proposta (...) deixa de ser obrigatória a abordagem de textos de Gil Vicente, Bocage e Cesário Verde e (...) é dada a possibilidade de selecção de textos de acordo com os interesses e necessidades dos alunos: poesia e contos ou novelas do século XX (...) e um romance de Eça».

Esta peregrina legitimação do critério dos alunos (mais uma demissão quanto à assunção das responsabilidades sérias de uma política séria no ensino do Português) conforta-se com a argumentação de que «a redução do ‘corpus’ permitirá, não só uma melhor abordagem do texto literário, como o trabalho com uma grande diversidade de textos não-literários, orais e escritos: crónicas, verbetes de dicionários, artigos científicos, relatórios, dissertações, entre muitos outros».

Tudo muito «pràfrentex»: o que é preciso é decapitar a literatura. Onde, em França, a «transversalidade» da língua também obriga os alunos do secundário a lerem uma série de livros por ano, por se considerar essencial na aprendizagem o contacto intensivo com o património literário de todas as épocas, em Portugal a APP ri desse nefasto conservadorismo, esperando que eles se precipitem vorazmente sobre relatórios, artigos científicos e dissertações e que aprendam muito mais com isso do que com um poema de Cesário ou um romance de Camilo...

Concluo que a direcção da APP não chega a reunir as condições mínimas para compreender um texto tão simples quanto o meu artigo ou o que sustenta nos seus próprios pareceres.

Talvez porque, para ela, muito gerundivamente baralhada, as pastas são portfólios e os alunos são «aprendentes», enquanto eu insisto em me considerar escritor e não «escrevente».

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