Expresso
Espelho meu
António Pinto Leite
Espelho meu, há alguém mais feio do que eu? É isto que Portugal se
arrisca a pensar de si mesmo.
Ser positivo não é iludir a verdade, é encará-la de frente. Não é dizer
que está tudo bem, quando não está, só para, supostamente, animar os
outros.
Há dias em que não gostamos de nos ver ao espelho. É nesses dias que
convém que olhemos. A imagem de Portugal incomoda-nos, é esta a verdade.
O olhar falido dos cofres do Estado, a preguiçosa desconcentração que
nos atrasou todos os dias na estatísticas internacionais, a obesidade
obscena do Estado mais caro e mais ineficiente da União Europeia, os
valores que se procuram e não se alcançam, como se o reflexo do espelho
não nos desse qualquer identidade.
Depois, o espelho mostra a porcaria, sintomas repentinos de lentas
doenças profundas.
Cresce aos nossos olhos a imagem da corrupção com a sublime impunidade
de ter tido, durante anos, o estatuto de voz corrente. À nossa vista,
até manchas de uma cor podre e sinistra, assustadora mesmo, como esse
funcionário pedófilo exemplar, qual lobo à solta num aviário, sob
protecção das instituições, durante décadas.
Verificamos no espelho, mais tecnicamente, que peritos nos dizem que,
aplicando princípios de racionalidade económica aos sistemas de saúde e
de educação, seria «seguramente» possível obter poupanças superiores a
30%, com melhoria de qualidade.
Radicalizamos aí o nosso embaraço. Centenas de milhões de contos
desperdiçados, que sobressalto, que roubo às famílias, aos cidadãos, às
empresas sérias, que crime contra os que verdadeiramente precisam, que
se faria com todo este dinheiro, pensamos obviamente. Esfolamos as
classes médias para não dar a ninguém.
É o embaraço, mas também o sufoco, porque a imagem mostra-nos uma
sociedade em boa medida a resistir às mudanças mais elementares, ai
Jesus que um emprego inútil no Estado, pago por todos os portugueses, é
um direito adquirido.
Aproximamo-nos do espelho, para ver se há esperança na imagem, e
inquietamo-nos em comparações inevitáveis. É bom que nos inquietemos.
Onde já estão os que arrancaram connosco, a Irlanda, a traumática
Espanha, com o nosso «alter ego» catalão?
E os novos que vão entrar no nosso espaço, mais determinados e mais
arrojados? Se não agirmos depressa, em quantos anos Malta, Chipre,
República Checa, Hungria e outros, recuperarão o atraso relativamente a
nós?
Sacudimos o espelho, a imagem é real e, sobretudo, a realidade é real,
como é real estarmos na iminência de pagar o preço dos nossos erros.
Os portugueses estão a gostar cada vez menos da imagem que projectam de
si e ainda bem.
Portugal não tem um problema de Governo, porque o tem e bom. Portugal
tem um problema consigo mesmo, com o seu temperamento, com o seu
facilitismo, o seu deixa-andar, o seu acomodamento.
Este Portugal cinzento, em larga medida amedrontado, à mercê de povos
mais dinâmicos, inutilmente bonzinho, é cada vez menos suportável para
cada vez mais portugueses.
É rigorosamente de um povo determinado que Portugal precisa. Um povo
globalmente exigente, com pensamento positivo e pressionando, ele
próprio, elites que, em todas as áreas, se dêem ao respeito.
Ficarão uns a falar sozinhos, cheios de ideologias e passados, e greves,
e depois?
Basta, espelho meu, essa é que é essa. Portugal é muito melhor do que
isto.
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