Expresso - 10
Dez 05
O Parlamento e a investigação com embriões
J. P. Ramos Ascensão
«Para o amplo debate nacional
sobre a Procriação Médica Assistida e a investigação em
embriões, que se impõe, não basta um mero colóquio ou um dia
de audições em sede de Comissão de Saúde como o Parlamento
parece querer promover.»
ENCONTRAM-SE na Comissão de Saúde da Assembleia da
República quatro projectos de lei (do PS, PSD, PCP e BE)
recentemente aprovados em plenário com vista a regular a
Procriação Medicamente Assistida (PMA).
Estes projectos versam matérias eticamente tão
problemáticas como o acesso à PMA de solteiros ou membros de
uniões de facto, inclusive homossexuais, e independentemente
de sofrerem de infertilidade (questão da subsidiariedade da
PMA); a admissibilidade da PMA heteróloga, isto é, aquela
que recorre a sémen ou ovócito de terceiro(a), alheio(a) ao
casal; o recurso à maternidade de substituição (vulgarmente
conhecida como «barriga de aluguer») e à inseminação e
fecundação «post mortem»; o direito do filho nascido
mediante PMA a conhecer os seus pais biológicos (direito à
identidade pessoal); a selecção de embriões no contexto do
recurso ao diagnóstico pré-implantação; ou, ainda, a
criação, deliberada ou não, de embriões excedentários, bem
como a possibilidade da sua utilização em investigação
científica.
Ora, além das disposições da Convenção dos Direitos
Humanos e da Biomedicina que devem ser aqui observadas, a
nossa Constituição submete teleologicamente toda a
actividade legislativa neste campo à protecção da família,
vinculando-a ao princípio ético-jurídico cimeiro da
dignidade humana que impõe, designadamente, a não
instrumentalização tanto da mulher como do embrião. Além
disso, há que ter em conta os pareceres recentemente
emitidos, neste campo, pelo Conselho Nacional de Ética para
as Ciências da Vida (CNECV).
No ponto n.º 12, relativamente aos embriões excedentários,
afirma-se claramente que «a destruição de
embriões criopreservados com o fim específico de obtenção de
células estaminais destinadas a investigação constitui uma
instrumentalização contrária à sua dignidade».
E isto porque a experimentação em seres humanos incapazes
de consentir é admissível somente em seu benefício
terapêutico directo, sendo aplicáveis neste domínio,
nomeadamente, o princípio da inviolabilidade da vida humana
e o princípio do primado do ser humano sobre a sociedade.
Isto sem olvidar ainda que a pluripotencialidade é uma
característica que se encontra também em outras células, não
embrionárias, e que os únicos resultados terapêuticos, até
agora registados, obtidos em seres humanos, decorrem da
utilização de células estaminais não colhidas em embriões.
Pelo que deverão ser estas linhas de investigação, não
eticamente problemáticas, a ser incentivadas, como de resto
o parecer preconiza relativamente às células estaminais
adultas.
Admite-se, como já foi dito, que o parecer não seja
totalmente esclarecedor no que tange à base
técnico-científica do problema; com efeito, ao afirmar que
«a colheita de células estaminais de embriões
que não é por si própria causa de destruição desses embriões
não levanta objecções éticas», o parecer suscita a
questão de saber em que circunstâncias tal colheita se
verificará. Mas o parecer é cristalino quanto à afirmação do
princípio da inadmissibilidade ética da investigação
destrutiva com embriões. Assim, se, perante o actual estádio
de desenvolvimento da técnica, não se puder obter células
estaminais de embriões sem que daí resulte, directamente, a
sua destruição, então, à luz do princípio consagrado, não é
lícita, eticamente, a obtenção de células estaminais de
embriões. De resto, é bom notar-se que o entendimento
prevalecente no n.º 12 opunha-se justamente àqueloutro que,
reconhecendo diferentes «graus de dignidade»
dos embriões humanos, admite excepcionalmente a obtenção de
células estaminais a partir de embriões excedentários
criopreservados sem «viabilidade biológica»
ou «excluídos de projecto parental».
Ora, a referida Convenção, a nossa Constituição, este
parecer, bem como o anterior do CNECV, assim como as demais
opiniões da comunidade científica e das organizações da
sociedade civil, e a própria opinião pública, não podem
deixar de ser devidamente tidos em consideração pela AR na
discussão e para a aprovação dos projectos agendados.
Para o amplo debate nacional sobre a PMA e a investigação
em embriões que se impõe, face à gravidade da matéria em
presença, não basta, naturalmente, um mero colóquio ou um
dia de audições em sede de Comissão de Saúde como a AR
parece querer promover, correndo-se mesmo o risco, se se
seguir esse caminho, de um veto presidencial, repetindo-se
assim o já sucedido anteriormente neste domínio.
Será possivelmente por isso que se detecta na nossa
sociedade civil o aparecimento de uma corrente de fundo
exigindo a submissão a referendo destas matérias mais
sensíveis relativas à PMA e à investigação com embriões, à
semelhança do que aconteceu recentemente na Itália e na
Suíça, o que constitui, seguramente, uma via de solução a
ter em conta.
Jurista. Docente universitário
[anterior] |