Público - 19 Dez 05

República, educação e liberdade

Mário Pinto

 

1.Creio que, talvez não por acaso em tempo de campanha eleitoral, houve quem quisesse açular uma guerra político-religiosa a propósito da presença do crucifixo de Cristo em algumas, poucas, escolas públicas. A esse propósito, várias opiniões se manifestaram e verifica-se que existe uma questão latente que não se deve minorar. Mas foi evidente que muitas vozes representativas e cultas criticaram o simplismo radicalista deste assédio laicista.

2. Sem dúvida que, se a escola pública fosse autónoma, isto é, se fosse realmente escola das concretas, vivas e livres comunidades de professores, alunos e pais (e não instrumentalizada por um Estado abstracto, ideológico e centralista), talvez pudesse haver até mais do que quinze ou vinte escolas com crucifixo nas salas de aula, em Portugal. Isso quereria dizer que a escola pública espelhava, nesses casos como em outros onde o crucifixo não estivesse entronizado, a neutralidade religiosa do Estado e, ao mesmo tempo sem qualquer contradição, a efectiva liberdade de educação dos portugueses, garantida na Constituição e na Declaração Universal dos Direitos do Homem.
Mas de facto a nossa escola pública monopolista não é autónoma nem livre. E por isso não pode ser pluralista. É um estabelecimento burocrático que executa um projecto educativo central de Estado-Educador, sofrido por pais, alunos e professores. Não, evidentemente, em nome da liberdade de educação, mas sim de uma uniformização igualitária que se torna por isso autoritária, não engrandecendo ninguém e só contentando os que querem dominar as mentalidades. Recentemente, num debate televisivo, toda a gente concordou que a nossa escola pública não tem gozado de autonomia.

3. Pareceu-me um pouco intrigante que, antecedendo este episódio, uma associação privada se tenha proposto o objectivo de, aparentemente, desencadear uma caça ao crucifixo na defesa da chamada "república laica", num tempo em que em Portugal se aprovou já a nova lei da liberdade religiosa e se assinou a nova Concordata, sempre num clima de grande serenidade, consenso e elevação. Mas depois dei-me conta de que havia (parece haver...) um projecto ideológico militante em marcha para reacender a batalha do laicismo contra as igrejas, em nome de uma tal chamada "cidadania republicana". E foi o artigo de Vital Moreira, no Público de 6 Dezembro, que me fez compreender isto. Intitulado "a escola e a religião", aquele que, com a antecedência de cinco anos, está já convidado para preparar as comemorações oficiais do centenário da República Portuguesa, veio defender que a nossa actual república é como um regresso (e cito) "ao paradigma republicano originário de uma escola universalista e sem identificação religiosa, como condição mesma da igualdade e de não discriminação dos seus utentes e do seu papel essencial na socialização e na coesão social".

4. Talvez para tornar mais viva a "recuperação dos princípios do Estado laico e da neutralidade religiosa da escola pública" da primeira República, reedita-se, no mesmo artigo, um republicaníssimo ataque aos católicos, de que me permito (com a devida vénia) citar o seguinte trecho. "Nestas questões, a tática dos meios confessionalistas é sempre a mesma, ou seja, fazerem o mal e a caramunha. Primeiro montam um aranzel a propósito de tudo o que ponha em causa os privilégios da Igreja Católica, mesmo os mais incompreensíveis e injustificáveis à luz do estado laico e da escola laica, como é o caso. Depois acusam os defensores dos princípios laicos - que acontece serem os princípios constitucionais - dos mais nefandos propósitos, nomeadamente o de quererem provocar uma "guerra religiosa", agitando freneticamente, e em coro, o espantalho do "laicismo anticatólico". Com isso vão adiando as correcções que a Constituição e os princípios republicanos impõem, nalguns resquícios do Estado Novo nesta matéria". (Fim de citação).

5. O artigo em apreço contém uma argumentação que, na circunstância, reveste especial significado. É que ele enfatiza que "o princípio da separação entre o Estado e as igrejas" "está no cerne da própria ideia de república entre nós, tendo associado desde a origem a laicidade da escola pública". E insiste: "Ambas as noções são condição essencial da cidadania republicana". Defende que, precisamente por lhe faltar "a ideia do Estado laico e da escola laica", "nem a historiografia dominante nem o conceito popular" reconhecem o Estado Novo como uma segunda república.
Ora, que o princípio da separação tende a fazer parte do conceito da democracia política moderna, e não apenas da república, é assaz consensual. Mas o mesmo se não pode dizer da escola laica, se com isso se quer considerar como indispensável um monopólio estadual da escola pública laica, única apoiada pelo Estado como instrumento de socialização e de educação unicitária. O conceito de república não repele que o Estado garanta uma rede de escolas do Estado, que podem ser laicas; mas não exige que esta rede seja monopolista, e o Estado pode igualmente financiar escolas privadas que prestem um serviço público. Se assim não fosse, por exemplo a Alemanha não seria uma república. E as monarquias nórdicas, da Holanda e da Bélgica, onde o Estado paga as escolas cristãs, seriam o quê?

7. A questão de fundo, levantada pelo episódio do crucifixo e do artigo no jornal, é a velha questão da liberdade de escola e do pluralismo na escola pública. Nenhuma escola pode conter dentro de si todos os legítimos projectos educativos que os educandos, ou os seus pais, possam legitimamente escolher. E que os professores legitimamente oferecer. Neste sentido, nenhuma escola é internamente pluralista. Como já demonstrou muito bem António Barreto, num conhecido ensaio, sempre a escola pública teve um projecto educativo ideológico. A neutralidade, ou o pluralismo (interno), da escola pública é, pois, uma falácia.

8. Assim, o mal está em que se pretende fazer passar um intencionalmente empobrecido projecto educativo de Estado laico, ainda por cima centralista e ineficaz (v. artigo da Senhora Ministra da Educação no Público de 18 Nov.), por um projecto educativo pluralista e capaz de satisfazer a liberdade de todos; quando, afinal, o que ele pretende não é isso, mas sim realizar uma socialização e uma coesão cultural e social de todos numa indefinida mas laica "cidadania republicana".
Aos católicos, legitimamente monárquicos ou republicanos, eu aconselharia a aceitarem a falsa neutralidade e as limitações do pluralismo da escola estatal. Mas também a reivindicarem que uma tal escola é, por natureza, apenas supletiva e optativa, devendo o Estado garantir, com igualdade de apoio financeiro, o direito social à educação escolar dos cidadãos que prefiram outra escola. Liberdade de escola, é tão somente do que necessita a nossa "cidadania tout court". Professor Universitário

[anterior]