Expresso - 30 Dez 06

 

Natal em liberdade

João Carlos Espada
 

Os nossos comissários não suportam a liberdade, a não ser quando ela é interpretada como conformidade com os seus planos abstractos de perfeição
 

O hábito instalou-se também entre nós: por ocasião das celebrações natalícias, os comissários do politicamente correcto insurgem-se contra a mais pequena manifestação da festa cristã na chamada praça pública. Em nome da chamada neutralidade do Estado e - pasme-se - da liberdade de culto, advogam a eliminação de todas as referências cristãs da vida pública das sociedades ocidentais: presépios nas escolas do Estado (e até em empresas privadas), cartões e mensagens oficiais de Natal, pinheiros decorados nas ruas e sabe-se lá que mais.

O estilo de raciocínio dos nossos comissários revela desde logo de onde vêm: da tradição jacobina continental. Parafraseando Oakeshott, eles falam da liberdade na linguagem predilecta de um russo ou de um turco - isto é, de quem nunca usufruiu duradouramente da liberdade. Inevitavelmente, essa é a linguagem de premissas abstractas, de um imaginário modelo de perfeição, a que eles chamam ‘liberdade’.

Este modelo de perfeição nunca foi usufruído por ninguém em liberdade. Sempre que tentaram aplicá-lo - na França de 1789, ou na Rússia de 1917, para não entrar em mais detalhes - as populações realmente existentes sentiram esse modelo de perfeição como uma intolerável opressão sobre os seus modos de vida, e nunca os sentiram como libertação.

Por essa razão, aos nossos comissários passa despercebida a característica fundamental da liberdade: a de poder usufruir o modo de vida de cada um, a de viver e deixar viver. “Liberdade, escreveu Isaiah Berlin, é liberdade, não é igualdade, nem equidade, nem justiça, nem felicidade humana, nem uma consciência tranquila”.

Para quem adopta este conceito de liberdade - liberdade como usufruto, como «enjoyment» - não passa pela cabeça exigir que o Natal cristão seja assinalado pelas autoridades de um país muçulmano com a mesma intensidade que o Ramadão. Também não lhe ocorre exigir a eliminação das referências ao Ramadão na praça pública de um país muçulmano, como uma espécie de compensação ‘neutralista’, para a ausência de referências oficiais ao Natal. O que este conceito de liberdade exige é que os cristãos sejam deixados em liberdade para usufruir das comemorações do Natal.

Pensávamos que esta exigência estava assegurada no Ocidente, onde a liberdade nasceu e tem sido experimentada (sublinho experimentada) como usufruto de modos de vida descentralizados e não centralmente desenhados. Mas os nossos comissários não suportam a liberdade, a não ser quando ela é interpretada como conformidade com os seus planos abstractos de perfeição.