Diário de Notícias - 2 de Fevereiro
Cruzeiros matrimoniais
Roberto Damatta Ao completar, pasmem os leitores,
quarenta anos de casado e de casamento, honrei a minha longa e para muitos
inimaginável vida conjugal com um recreio: um momento de folga ou de
communitas, como diria meu amigo, o grande antropólogo escocês Victor
Turner. Dei-me, assim, de presente um espaço extraordinário e, por isso
mesmo, ambíguo e paradoxal, dentro do qual Celeste, minha mulher, e eu
pudéssemos celebrar com alegria, parvoíce, júbilo e sensação de milagre,
tudo o que vivemos e escapámos em quarenta anos de vida em comum.
Zarpámos num cruzeiro.
Mas o que celebrar, perguntaria o leitor céptico e distante desse ideal
monogâmico ultrapassado, num casamento de quarenta anos?
Ora, o primeiro plano a ser festejado é o facto de estar casado com a
mulher e com o casamento. Pois uma coisa é estar (e ser) casado (por
obrigação, amor, rotina, medo, inércia, religião, etc.) e uma outra muito
diferente é o casamento que obriga a encontrar no outro num elo
teoricamente estabelecido por um acto de vontade individual chamado entre
nós de "amor" sua consagração e razão de ser. Realmente, uma pessoa pode
estar casada e não ter consciência do seu próprio casamento. E,
inversamente, muitos têm noção e lembrança apenas do casamento, esquecendo
o facto de estarem casados. A relação entre o estar casado e o casamento é
de tal ordem que eu diria, com meu exagero de sempre, que nas camadas
superiores da sociedade, sobretudo entre as celebridades, o casamento é
mais importante do que casar; ao passo que, nas camadas médias e
inferiores, afirma-se o estar casado mais do que o casamento.
Para a classe média, e mais ainda para os pobres, o facto de estar
cumprindo suas obrigações matrimoniais, de prestar serviços domésticos
mútuos (ela faz o cafezinho e lava a roupa; ele troca o pneu do carro e
compra o pão), ocupa certamente um lugar central na vida de um casal que
muitas vezes se associou no matrimónio sem eira, beira ou festança. Só com
a cara e a coragem de confiar no seu amor e assinar alguns papéis que eles
sabiam ser inteiramente convencionais. O casamento entre as pessoas comuns
encarna-se mais na expressão "sou casado(a)!" do que na cerimónia que
parece ser o foco da vida conjugal entre os ricos e famosos. Nestas
camadas, como a revista Caras, não me deixa mentir, quem tem "cara"
casa-se às grosas, o festival da entrega formal, sendo muito mais
importante do que a vida de casado, sempre lida como rotineira,
insustentável e incompatível com os incríveis projectos pessoais de cada
um, como mostram as entrevistas desses casadouros após o corte do bolo e o
brinde com champanhe.
A diferenciação salienta uma questão, que todo o casal ligado por
intermédio de um regime matrimonial monogâmico tem que enfrentar: o
contraste entre o acto e o facto matrimonial. O acto se concretiza na
carismática e emocionante festa de casamento que celebra o amor e reúne
parentes e amigos numa communitas nada banal ou rotineira. O facto
acontece simultaneamente, quando se toma consciência que os amantes
apaixonados estão se transformando em "marido" e "mulher" justamente por
meio da celebração charmosa.
O diálogo entre casamento e estar casado se estabelece nas crises [como é
que fiquei casada(o) com "X" por tanto tempo?] e nas comemorações. Nesses
aniversários de casamento que marcam menos o tempo da festa do que a
realidade sempre vista como trivial e paulificante do "estar ou ser
casado". Uma boa prova disso é o facto de o casamento ser obrigatoriamente
celebrado pelos pais, parentes e amigos; mas sua celebração ser obrigação
do casal. Falamos: "casei minha filha", mas não podemos celebrar o
aniversário de casamento de ninguém sem a sua mais profunda cumplicidade.
Foi isso que descobri nesta celebração desses meus quarenta anos de
casamento, quando renovei um ritual que se esvai da memória com os gestos
vivos das rotinas impressas no "estar casado". Se o casamento me libertou
e o "estar casado" me aprisiona, a celebração matrimonial orquestrada num
navio e no lindo mar azul do Brasil confirma a convivência miraculosa e a
realização renovada e serena do amor.
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