Público - 13 Fev 03
O Contrário do Amor
Por PEDRO STRECHT
A perversão é o contrário do amor. Ou, dito pelo lado positivo, o amor é o
contrário de perversão. Pois, de verdade, o amor não afasta. Une
Quase passou ao lado da opinião pública o caso dos adolescentes que, em
colónias de férias em Vila Nova de Milfontes, nos anos de 1998 e 1999,
viveram situações em que o seu grupo de monitores, isto é, adultos a quem
os pais entregaram a responsabilidade de cuidar dos seus
filhos, os envolveram em "jogos" de características
marcadamente sexuais. Tratava-se do designado "jogo das
personagens", em que os monitores convidavam os adolescentes
rapazes e raparigas a despir-se e a praticar actos de exibição perante o
grupo; segundo li em várias reportagens (das quais recordo uma da revista
PÚBLICA), os rapazes viam ainda os seus órgãos sexuais ser medidos, sendo
castigados fisicamente se estes não ultrapassassem determinada dimensão.
Também houve situações em que os pêlos púbicos eram cortados. O caso
chegou ao conhecimento geral tempos depois e, embora os
pais tivessem retirado as queixas contra estes monitores,
o Ministério Público avançou com processo-crime. Ao que
parece, os arguidos reconheceram os factos, mas negaram o
teor sexual dos jogos, o mesmo se passando com a maior parte das
testemunhas. Aguarda-se ainda a decisão deste processo.
Ora, este é um caso sobre o qual já se ouviram muitas opiniões, nas quais
predomina a ideia de que, "afinal, está tudo bem", ou "os adolescentes
têm as hormonas à flor da pele e adoram tudo quanto
representa sexualidade", ou ainda que "estes são jogos
pedagógicos que favorecem a integração em grupo e o
normal desenvolvimento emocional". Porém, faz todo o sentido discordar e
explicar porquê.
A primeira questão que é impossível não tocar é que estes eram jogos de
conteúdos sexuais explícitos, apresentados em contexto fragmentado das
vivências afectivas. Não há pior ensinamento da sexualidade do que
apresentá-la como se fosse algo que apenas ocorre "do umbigo para baixo",
isto é, numa componente unicamente física, sem a respectiva vivência
mental, emocional. É um erro muito grosseiro, e talvez
também seja por isso que grande número de adolescentes
viva hoje em dia determinado tipo de experiência de forma
desafectada, ou apenas existindo como projecção de
produções mentais (desejos, medos, fantasias) de características
patológicas. Se a isto juntarmos o grau de exposição à informação sexual
que os mais novos têm nos tempos em que vivemos, não é
difícil compreender o risco de vivências pouco integradas
e, por isso, emocionalmente muito menos gratificantes.
Por outro lado, quando acontecem "jogos" exploratórios da adolescência, eles
são em contexto de pares, isto é, entre rapazes e/ou raparigas de idades
próximas, e não por ou com interferência de adultos, em relação aos quais
existe uma óbvia diferença de gerações e de papéis. Ora, quando ocorre o
oposto, implica que existe uma excitação do adulto a propósito do
envolvimento com o corpo do adolescente, numa relação de qualidade sexual
perversa. Para além do mais, quando acontecem esse "jogos" entre
adolescentes, eles decorrem num contexto de maior privacidade ou
intimidade, pressupostos típicos de uma vivência sexual
normal. Por exemplo, a masturbação adolescente existe, é
comum, pode até acontecer num contexto entre pares, mas
não implica uma exibição pública perante outros ou perante
o grupo em geral.
Acresce ainda que "jogos" do género dos que foram descritos nessas colónias
de férias, implicaram necessariamente as noções de humilhação e de
punição física, isto é, a existência de uma relação com
características sádicas entre o adulto e o adolescente.
Pese embora o facto de estes adolescentes poderem ser
emocionalmente saudáveis à data destes factos, não podemos negar
a possibilidade de um impacto psicológico negativo nas suas vidas actuais
e futuras; quanto mais não fosse, o risco de
identificação ao agressor, correndo-se o risco de
reprodução destes comportamentos com outros, embora na
posição inversa (o abusado passar a ser abusador). Mas quem nos garante
que não haveria miúdos mais frágeis neste grupo? E como reagiriam perante
esta situação de exposição pública e de humilhação desnecessária?
Quanto aos adultos, monitores destas colónias de férias, agiram como agiram
em situação de responsabilidade pelo bem-estar dos mais novos. Eram
alguém a quem os pais tinham confiado os filhos, o seu
bem-estar, durante um tempo de férias. É imoral existir
uma ideia global de impunidade e de desrespeito pelos
mais novos, ou seja, que qualquer adulto pode fazer o que lhe apetecer
sobre uma criança ou um adolescente. Não tem de ser assim. Não pode ser
assim.
Por último, uma palavra sobre os pais que retiraram a queixa. Compreendo-os.
Provavelmente, têm medo de uma nova exposição dos seus filhos, temem que
a ida a tribunal os possa arrastar em processos lentos e
longos, de final nem sempre feliz. "Para quê?", muitos
interrogam-se. "Já passou", "Eles esquecem...",
acrescentam e, por vezes, até é verdade. Mas não é possível
deixar de dizer que deviam ter mantido a queixa. A noção de justiça serve
de modelo de reparação e constitui um garante da
existência de regras e limites, num tempo de crescente
"vale tudo"... Quanto ao Ministério Público, avançou,
fazendo o que lhe competia: parabéns.
Todos os anos conheço dezenas de adolescentes que partem felizes,
confiantes, para um tempo de férias em colónias com outros rapazes e
raparigas da mesma idade; quase todos gostam, e vivem experiências muito
gratificantes de entretenimento, amizade, amor. Ainda bem, e todos
desejamos que assim possa continuar a ser.
Por isso, não é difícil dizer que, sem exagero algum, o que se passou nessas
colónias, em Milfontes, foram actos de características perversas. A
perversão é o contrário do amor. Ou, dito pelo lado positivo, o amor é o
contrário de perversão.
Pois, de verdade, o amor não afasta. Une.
Não fere. Cura.
Não reduz. Amplia.
Não envergonha. Orgulha.
Não enfraquece. Fortifica.
Não culpabiliza. Liberta.
Não escurece. Ilumina.
[anterior]
|