Diário de Notícias - 24 Fev 03
A
origem da tragédia
João César das Neves
Chocou muita gente a
afirmação de que vivemos uma campanha de promoção da pedofilia. Mas a surpresa
vem do esquecimento de um princípio básico: a eliminação das regras impõe sempre
a vontade do mais forte.
Na ausência de leis domina a lei da selva. Vivemos numa sociedade que sabe bem
que a liberdade precisa do amparo da legalidade e do civismo para se defender.
No campo económico, por exemplo, toda a gente sente que, se forem eliminadas ou
enfraquecidas as leis que regulam as empresas, os patrões, mais fortes,
explorarão os trabalhadores. Mas, apesar desta evidência esmagadora, no campo
íntimo e privado o nosso tempo luta para a mais completa eliminação de regras,
hábitos e costumes. Aí deve vigorar a liberdade mais absoluta, isenta de tabus,
inibições, limites. Este princípio foi mesmo erigido em valor sagrado.. O
resultado, naturalmente, é abrir espaço ao domínio do predador.
A realidade desta tragédia é esmagadora. O caso mais evidente está na condição
feminina. No campo socioeconómico, com fortes leis e civismo, o nosso tempo
conseguiu avanços únicos na libertação da mulher. Mas no campo pessoal e
familiar, ao impor a eliminação de tabus, nunca a opressão feminina foi tão
profunda. A pornografia, a prostituição, a promiscuidade, a precariedade
familiar, a traição, o divórcio, a solidão, fenómenos de sempre, atingem hoje o
paroxismo. Até o preservativo e a pílula libertaram das responsabilidades, não a
mulher, mas o homem. A actual situação da mulher é, pois, paradoxal, com larga
liberdade económica e crescente exploração pessoal.
Mas os fracos são também os embriões, crianças, idosos, doentes, deficientes.
São eles as vítimas do aborto e clonagem, da promiscuidade e divórcio, da
solidão de lares e hospitais, do suicídio e eutanásia. A obsessão pelo prazer
dos poderosos leva sempre ao abuso dos mais fracos.
Nos media o processo é o mesmo. Vivemos num tempo que pensa dever fazer a
exposição e acusação pública de todos os crimes e injustiças, contribuindo para
a sua solução. Isso, quando se seguem as regras, é muito bom. Daí a importância
indiscutível dos media na nossa sociedade e o seu sucesso no combate ao mal. Mas
a utilidade da divulgação tem os seus limites. O actual frenesim mediático, sem
lei, mostra crescentemente o abuso dos mais fortes. Há cada vez mais casos onde
a notícia comete o agravo ou a violação do segredo da investigação perverte a
justiça.
Além disso, a fama incita o psicótico. Quando a maldade vem de pessoas
evidentemente desequilibradas, a publicitação dos vícios não só não previne mas
até promove. Está mais que documentado por sociólogos e psicólogos que o alarde
das reportagens sobre maus tratos a crianças, violência familiar, assassínios em
série e outras depravações é catalisador desses mesmo males. Sendo resultado de
perversões paranóicas, que se excitam com a notoriedade, em geral a publicidade
incita essas práticas.
Deste modo, não há muitas dúvidas de que a orgia recente de detalhes sobre
pedofilia é prejudicial. Depois do mérito excelente e insubstituível da denúncia
inicial, a imprensa agora complica a tarefa da polícia e agrava a situação das
pobres vítimas, nada fazendo para as aliviar e libertar.
Na falta dos costumes civilizados, domina a opressão e loucura das profundezas
de Dionísio. É esta, disse Nietzsche já em 1872,
A Origem da Tragédia.
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