Público - 8 Fev 04

Pedofilia e Aborto: Um Problema de Relação
Por FILIPA RIBEIRO DA CUNHA

Indignamo-nos, escandalizamo-nos, horrorizamo-nos com as informações que nos chegam diariamente sobre a pedofilia. O País acordou para uma realidade chocante que se escancarou diante dos nossos olhos incrédulos. Crianças maltratadas, abusadas, vítimas de adultos que lhes roubaram, violentamente a sua inocência e o seu direito a serem crianças. Porque é disso que se trata! É de impedir aquelas crianças, que estão ainda em processo de crescimento interior e exterior, que estão a formar a sua personalidade, individualidade, o seu ser único e insubstituível, de ter o direito a ser criança. Impressiona pensar que algumas vezes isso sucede com o consentimento dos próprios pais, aqueles que supostamente seriam os primeiros responsáveis pela educação integral do ser que lhes foi confiado.

Perante tamanha violência procuramos encontrar respostas mais ou menos profundas: problemas económicos, sociológicos, psíquicos, políticos, culturais... Não! Trata-se de um problema de relação. A palavra relação diz-me que o próximo será sempre outro, que o sujeito não será sujeitado. O próximo não será assimilado, abusado, violentado, reduzido, explorado, não será confundido comigo. Será respeitado como um ser autónomo, livre. O homem que não entra em relação, que mergulha num processo de preferência de si sobre todas as coisas, sobre a própria realidade, afirmando que não pertence a ninguém, fecha-se. O homem que não se percebe, que não toma consciência da sua própria identidade e da afeição a ela, perde-se e fecha-se. É o triunfo do individualismo que inevitavelmente leva a uma desarmonia. Muitos dos grandes males dos nossos tempos partem desta incompreensão do homem de perceber a razão da sua existência. Pensa que ama os outros, aqueles que o rodeiam, a mulher, os filhos, os amigos mas na verdade procura um suporte afectivo para a sua existência inconsistente. A relação que mantém com o próximo não é uma verdadeira relação, é antes um jogo de interesses mais ou menos consciente, no qual a afirmação de si terá de ter a sua primazia. A primazia do ter sobre o ser. Um emaranhado de posses.

E a criança nesta teia de posses perde a sua grandeza. Porque a criança que nos foi confiada, não é nossa, não é uma posse nossa, é um outro que não nos pertence mas que de nós depende para ser educado, para ser despertado, para tomar consciência de quem é. Só assim se poderá construir uma verdadeira relação familiar, num profundo respeito por aquele outro ser, frágil e pequeno, que nos é dado ter tão perto mas que é um outro. E essa relação constrói-se. Constrói-se desde o dia em que o óvulo fecundado carrega dentro de si esta grandeza de um ser único. Um ser que pede para ser reconhecido pelo homem.

Economista, docente universitária

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