Diário de Notícias - 9 Fev 04

Irrelevância
João César das Neves   

A lista dos graves problemas que afligem os portugueses inclui muitas questões, sortidas e variadas, com apenas um traço comum: a sua vaga relação com a agenda da classe política. Pelo contrário, o esforço e empenho dos responsáveis parece ir para assuntos que não interessam à população. As alocuções recentes do sr. Presidente da República chamam a atenção para este desfasamento.

Os dois grandes partidos sabem bem o que há a fazer nas magnas questões nacionais. Mas cada um tem de assegurar que o outro não fica com os louros da decisão e por isso nada anda. Desemprego, recessão, Educação, Saúde, Orçamento só são mencionados em acusações mútuas, sem busca de solução. Os únicos a pretender resolvê-los são os ministros do momento, em quem todos batem, e que nada conseguirão até se dedicarem a bater nos seus sucessores.

Os estadistas deveriam servir para solucionar problemas nacionais. Em Portugal servem antes para criar problemas tolos que fingem resolver. Pactos de regime, reformas do sistema político, revisões da Constituição Portuguesa e criação de uma Constituição Europeia, assuntos que as pessoas ignoram e nunca seriam prioridades, são os temas que eles acham que nos deveriam preocupar. Só que democracia é as pessoas dizerem aos políticos o que os ocupa, não o inverso.

Mesmo a questão do aborto, que tanta energia suscita, não está em qualquer lista de inquietações dos portugueses e é um tema que a população já mostrou repetidamente não se achar à vontade para discutir, sentindo-se indecisa. A insistência obsessiva em o levantar deve mais a ânsias de protagonismo e conveniências tácticas que a qualquer sentido de dever público.

A irrelevância é o critério jornalístico. Na imprensa, ficam sempre na sombra as reformas necessárias, as evoluções económicas, as experiências educacionais, as reais opções políticas, realistas e pragmáticas, com impacto na sociedade. O espaço é concedido a questiúnculas espúrias, elucubrações fantasiosas, políticos irrelevantes. O que tem cobertura são especulações sobre as presidenciais, zangas entre barões ou assuntos de franjas minoritárias. Por exemplo, as clivagens no PCP ou as opiniões coloridas do Bloco de Esquerda monopolizam a atenção. Mas estes grupos, sem qualquer responsabilidade de poder e ignorando-se se até o pretendem, para além da «sociedade sem classes» e «ditadura do proletariado» esquecidas há décadas, têm como única utilidade criticar o trabalho dos outros. A questão, é grave, devido aos vícios seculares da nossa democracia. No Liberalismo e na I República as classes política e jornalística, sem o menor sentido do interesse nacional, destruíram o País em debates abstrusos e divisionistas. Só após 1974 Portugal soube o que é um sistema democrático a funcionar. Apesar dos defeitos, os políticos e debates actuais são muito superiores aos antigos.

Mas deve atentar-se na evolução. Nas duas primeiras décadas, dois projectos, da construção da democracia até 1984 e da integração na Europa até 1994, foram os grandes propósitos que mobilizaram os portugueses e ordenaram as orientações. Nos últimos dez anos recomeçou o desatino. Levantou-se o corporativismo, ressurgiram velhos debates visionários, regressaram antigos vícios políticos. Sem uma mudança urgente de atitude na classe dirigente, ela cairá na irrelevância e o País no caos ou na ditadura.

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