Público - 10 Fev 08

 

Parabéns. E pêsames
António Barreto Retrato da semana

 

As escolas sem autonomia ou com autonomia aparente transformam-se em repartições dominadas pela burocracia

 

O Ministério da Educação tomou uma boa decisão: a de alterar o regime de gestão das escolas. O decreto, aprovado em primeira leitura pelo Governo, foi submetido a debate público até ontem. Saberemos em breve quais os resultados e as lições que o ministério retira.

 

Tanto quanto se percebeu pelas notícias, há opiniões contrárias, designadamente de professores. Alguns (ou muitos) não vêem com bons olhos a direcção unipessoal da escola (um professor seria o director, com poderes próprios), nem a designação de um presidente não docente do novo conselho geral. Esta discussão está a agitar o universo escolar, o que é natural. O clima está de nervos, até porque há outras questões em discussão, especialmente a da avaliação dos docentes, que parece ter sido deficientemente preparada.

 

Nesta tentativa de reforma há aspectos centrais que merecem atenção. A vontade de estabelecer os poderes de um director, com mandato de três anos, duas vezes renovável. A intenção de entregar às comunidades locais novas competências e mais responsabilidades. O objectivo de alargar a autonomia de gestão das escolas. E a criação do conselho geral da escola, com a participação de pais e autarcas, é uma boa indicação que poderia enriquecer o sistema educativo. Mau grado muitos defeitos e apesar de a lei ser demasiadamente regulamentar, estas intenções são de aplaudir. Nas escolas, como em qualquer instituição, a autoridade difusa, camuflada de colegial, tem dado maus resultados. O afastamento das comunidades e das autarquias, relativamente às suas escolas, tem tido, há décadas, consequências nefastas, nomeadamente a do desinteresse dos pais pelo destino das escolas dos seus filhos. Existe já alguma evidência de que os pais se interessam mais pelas escolas privadas do que pelas públicas, onde são, em geral, mal recebidos. Finalmente, as escolas sem autonomia ou com autonomia aparente, como é hoje o caso, transformam-se em repartições dominadas pela burocracia do ministério obcecada com a regulamentação e a uniformização. Aplausos, pois!

 

Há todavia dúvidas sobre o alcance desta lei. Na verdade, o ministério fica a meio caminho. E, quando assim é, as reformas são, no melhor dos casos, toscas e os resultados débeis. Na verdade, meias reformas, meias ideias e meios objectivos, acabam por "morrer na praia". A autonomia e a entrega às comunidades, tal como aqui previstas, são insuficientes, pois o ministério quer manter controlos e não vai tão longe quanto seria necessário e possível. Mais ainda: como a reforma é híbrida na sua concepção, será equívoca, terá um máximo de defeitos e de inconsistências. Quem não sabe exactamente o que quer, quem não tem coragem para desenhar um modelo simples e claro e quem quer conciliar o incompatível deveria abster-se de reformar o que quer que seja, pois o resultado pode ser pior do que a situação anterior. Com todas as precauções do mundo, provocam-se as iras de todos, dos professores, dos pais e dos autarcas, sem nunca chegar a obter as vantagens de uma nova solução com potencialidades.

 

Há vinte anos, ou mais, que se dão pequenos passos na direcção da autonomia e da "devolução às comunidades" das escolas. Há décadas que se tenta envolver os pais na gestão das escolas, com ineficientes dispositivos que quase nunca resultaram. Há muito tempo também que os ministros, muitos deles pelo menos, se queixam de centralismo excessivo e confessam, geralmente em privado, que gostariam de entregar as escolas básicas e secundárias às autarquias, mas "não podem". As desculpas para estas fraquezas são numerosas, expressas muitas vezes pelos próprios. As autarquias não querem mais responsabilidades. Os pais não se interessam. Os professores são contra. A tradição portuguesa não é essa. E muitas outras, entre as quais avulta uma de excepcional importância. Dizem os delatores da entrega às comunidades que estas, sob domínio dos professores ou dos autarcas, fariam, conforme a região, escolas revolucionárias no Alentejo ou reaccionárias no Minho. É uma estranha convergência, de Salazar à democracia, passando por todas as formas de jacobinismo.

 

Não é possível administrar uma organização com dois milhões de alunos, quatro milhões de pais, duzentos mil professores e dezenas de milhares de funcionários. Na educação, tal como, aliás, na saúde, não se pode pretender gerir universos com estas dimensões humanas, políticas e financeiras. Nem as grandes empresas o fazem e adoptam sofisticados sistemas de descentralização. Os ministros, em vez de elaborar reais políticas, definir objectivos, prever o médio e o longo prazo e desenhar modelos, transformam-se em directores-gerais executivos a correr numa lufa-lufa atrás dos problemas e a inventar falsas soluções. Correia de Campos e Maria de Lurdes Rodrigues são dois excelentes exemplos de governantes com ideias e coragem, mas que se perdem na administração casuística, na quezília, na abertura de uma escola ou no fecho de uma urgência. Mesmo que fosse possível gerir centralmente tão enormes organizações, os resultados não seriam brilhantes. As escolas pertencem, por definição, às comunidades. Perante a escola de massas, cada vez mais se percebe esta relação essencial.

 

A entrega das escolas às autarquias, com responsabilidade e competências, teria ainda a formidável consequência de retirar a maior parte do trabalho ao ministério, reservando-lhe as suas funções nobres, que cada vez exerce menos: inspeccionar, avaliar, prever, assegurar os direitos fundamentais e cuidar da coerência nacional. Já se pensou no que poderia ser um ministério da educação sem nomeação de professores, sem definição de horários, sem autoridade sobre os técnicos de apoio, sem concursos de aquisição de bens, sem capacidade para aprovar, dia sim dia sim, regulamentos pedagógicos e normas de execução? Já se imaginou na utilidade de um ministério que se dedicasse a pensar, a apoiar e a inspeccionar, em vez de administrar, recrutar, fazer obras e ditar regras de comportamento? Após tantas décadas de miséria educativa e de caos escolar, com os péssimos resultados que se conhecem, merecíamos melhor. Nós todos e também os professores, os alunos e os pais.

 

Sociólogo