Diário de Notícias -
18 Fev 08
A diferença entre um direito e um bebé
João César das Neves
professor universitário
Há uma semana, no dia 11, passou o aniversário do
referendo ao aborto. Como se esperava retomou-se um
pouco o debate acalorado de há um ano, com opiniões,
números, críticas. Mas em geral passou despercebida
a grande diferença actual entre os dois campos.
Após apenas 12 meses as organizações pelo "sim"
desapareceram quase por completo. Aliás nunca foram
muitas, pois o campo era liderados por partidos.
Essa ausência parece natural. Ganharam, mudaram a
lei, descansam.
E não estão ociosas. Vamos vê-las em futuras lutas,
da eutanásia e procriação assistida ao casamento de
homossexuais. Mas aborto é tema passado.
Do lado do "não", pelo contrário, um ano após a
derrota de 2007 e dez após a vitória de 1998, a
actividade é mais intensa que nunca, com novos
dinamismos e instituições. Os jornais não ligam
muito e o Estado, que financia largamente o aborto,
pouco ajuda estas organizações de apoio. Mas os
movimentos pela vida mostram tal exuberância e
dinamismo que até parece terem ganho.
Esta diferença entre os grupos tem uma razão
profunda, que vem da própria disparidade original
das duas linhas sociais. A aparente simetria,
motivada pela dicotomia da resposta a sufragar,
sempre escondeu uma enorme incongruência de lógica e
finalidade. A distinção agora visível podia ser
intuída até antes do referendo.
As forças a favor da liberalização do aborto tinham
uma atitude eminentemente legal e regulamentar. O
propósito era garantir o que consideravam um direito
e lutar pela mudança da lei. Uma vez obtida a
alteração legislativa, não havia mais assunto e
partiam para outras causas.
Pelo contrário, as forças pela vida tiveram sempre
como propósito declarado as pessoas reais e
concretas. O combate político foi importante mas,
para lá das lutas sobre diplomas e estatutos,
dedicaram-se desde o princípio a organizar casas de
acolhimento, serviços de orientação, instituições de
apoio a grávidas, mães e crianças.
A defesa da vida não se faz, antes de mais, no papel
mas na vida.
Isto não é um insulto ao lado do "sim", mas
constatação factual. Esses movimentos limitam--se a
seguir a orientação tradicional da sua linha
ideológica, com antiga e elaborada justificação
teórica.
A abordagem de fundo da esquerda em geral, e da
variante marxista em particular, sempre foi melhorar
a vida das pessoas através da revolução das
instituições. O propósito meritório é o mesmo dos
movimentos virtuosos de todos os tempos, mas com
meios radicalmente novos. Usando análise científica,
acredita-se na construção da estrutura ideal da
sociedade, que resolverá todos os problemas.
As versões mais extremas e ingénuas da escola de
Marx estão abandonadas.
No original bastava o proletariado tomar o poder nas
instituições sem classes da sociedade socialista
para vir o paraíso terreal. Hoje esse sonho está
esquecido no limbo dos mitos românticos da História.
Mas a lógica básica do raciocínio mantém-se viva nas
novas encarnações da ideologia. Os movimentos do
aborto, como os ecologistas, sindicatos e partidos,
têm a sua fé posta em leis, contratos, regras e
regulamentos. Sempre nos mecanismos, nunca nas
pessoas.
As forças de esquerda sempre acharam que não se deve
dar esmola porque isso só atrasa a revolução. Esta é
a diferença entre a preocupação marxista com os
proletários e a caridade cristã com os pobres.
O instrumento progressista sempre foi organizativo,
não pessoal. Confia-se em leis e mecanismos sociais,
não em amor, honra, heroísmo, génio. As pessoas são
meras peças no grande maquinismo comunitário.
O comunista ama a humanidade, o cristão ama o
próximo.
Para as forças do "sim" o sofrimento das mulheres
era argumento para mudar a lei, o que eliminaria o
dito sofrimento. Para as forças do "não" é algo que
tem nome, morada e pede ajuda.
Aliás, a diferença na formulação corrente dos
propósitos indica isso mesmo. O "sim" é a favor da
escolha, um conceito moral, filosófico, enquanto o
"não" é pela vida, um assunto biológico, animal. É a
mesma diferença que existe entre um direito e um
bebé.