Diário de Notícias -
09 Fev 09
O terrível erro estratégico
João César das Neves
O sr. primeiro-ministro tem uma qualidade que até os
adversários lhe reconhecem: sabe de política. Por
isso é tão triste vê-lo cometer um erro grave que
nos custará muito caro: a aposta nas obras públicas
para enfrentar a crise.
O Governo dirá com razão que essa não é a
prioridade, pois nem vem mencionada na Iniciativa
para o Investimento e o Emprego. Mas, como sabe bem,
a questão é política, não técnica. O Executivo
permitiu a colagem desses grandes projectos à sua
imagem. Aliás o primeiro-ministro não se cansa de
repetir que "o Estado está a reforçar o investimento
público, porque sabe que o combate à crise passa por
aqui, que há muitas pessoas e empresas cuja
actividade depende deste investimento" (Lusa, 31 de
Janeiro).
Mas não será uma boa ideia? Afinal, em plena
derrocada financeira, os governos de múltiplos
países enveredam por essa via. Qual é o mal de
avançar com o TGV, aeroporto de Lisboa,
auto-estradas, barragens, etc.?
O erro é muito grave por três razões diferentes. A
primeira é política: transforma Sócrates num
anti-Guterres. O Governo do PS dos anos 90
apresentou-se ao eleitorado com uma crítica aberta
ao "betão" do período cavaquista. A alegada obsessão
do PSD com as estradas e infra-estruturas era uma
tolice que não servia as pessoas; os socialistas
governariam com objectivos mais humanos. Hoje
vive-se a inversão de papéis e retóricas, com PS e
PSD a atacar o que então defendiam. Esta situação
afecta muito mais o Governo que a oposição, com
Sócrates a sofrer as críticas que ele e os
correligionários usaram há 15 anos.
A segunda razão é económica, transformando Sócrates
num anti-Cavaco. Existe uma diferença fundamental
entre o betão cavaquista e o socrático: a lógica
económica. Nos anos 80, o País estava atrasado e
carente de infra- -estruturas. Hoje, após 20 anos de
investimentos públicos, restam poucas obras com real
justificação. Os projectos de que se fala implicam
auto-estradas vazias, comboios às moscas, um
excelente aeroporto deitado fora.
O erro económico de José Sócrates está em acreditar
que o investimento público é bom em si mesmo. O
primeiro-ministro demonstra uma fé cega na
virtualidade imperativa dos projectos: basta
anunciá-los e gastar dinheiro para a economia
arrancar. Esquece que todo o dinheiro que gasta vai
tirá-lo ao bolso dos contribuintes. Tal como o
investimento privado, os projectos do Estado têm de
ter utilidade e justificação. Aliás até têm de ter
mais, pois usam o dinheiro dos pobres. Apostar
milhões em obras faraónicas nunca resolveu nenhuma
crise.
Pior ainda, na ânsia de realização, esquecem-se os
custos lançados sobre as próximas gerações. Além das
enormes despesas de manutenção, ao garantir aos
concessionários das futuras auto-estradas mínimos de
tráfego que nunca vão ser cumpridos, o actual
Governo hipoteca os orçamentos nacionais no
horizonte previsível. Tal política raia os limites
da infâmia.
Este elemento liga-se ao terceiro aspecto do erro
governamental, que é financeiro. Com esta
estratégia, Sócrates arrisca-se a aparecer como...
anti-Sócrates! Se Guterres era o campeão contra o
betão, o actual primeiro-ministro apresentou-se como
o defensor do rigor orçamental. O grande feito da
legislatura foi a redução do défice público de mais
de 6% para menos de 2,5% do PIB. Agora, no último
ano, pode regressar a níveis próximos dos que
encontrou.
Em momento de crise financeira seria tolice
preocupar-se com o equilíbrio das contas. Esta é a
altura de o Estado se endividar, como todos os
parceiros fazem e o permite o Pacto de Estabilidade.
Mas com a sua abordagem o Governo não cria apenas um
défice conjuntural. Ao privilegiar as obras de longo
prazo, em vez de descer impostos ou dar subsídios,
Sócrates compromete a solidez estrutural das contas
públicas. Após a crise, o próximo primeiro-ministro,
quem quer que seja, repetirá o que o actual Governo
teve de dizer em 2005 sobre austeridade. O erro de
Sócrates é o mesmo de Guterres: bloquear com dívidas
o próximo surto de crescimento económico.