Público - 5 Jan 04

"Errar É Próprio dos Homens. Persistir no Erro É Próprio dos Loucos"
Por MARIA DO CARMO VIEIRA

O que é o vento? "É uma massa de ar em movimento".

Esta definição, dada por um professor do 1ª Ciclo, foi considerada pelos intervenientes, na abertura da sessão do 2º Encontro de Investigação e Formação - Criatividade, Afectividade, Modernidade - Escola Superior de Educação, realizado em Novembro de 2001, uma profunda "agressão traumática" para as crianças. Quanto não seria mais eficaz, diziam, referir o moinho que roda com a ajuda do vento, as árvores e as flores que baloiçam e muitos outros exemplos que se iam dando através da leitura de um poema, considerada a estratégia mais correcta, mais delicada e a menos traumatizante para explicar aos alunos, ainda crianças, o "que era o vento".

Ouvi a leitura do dito poema, e a conclusão do "pedagogicamente correcto", paralisada de estupefacção e lembrei-me do testemunho de uma colega do 1º Ciclo, Manuela Castro Alves, no II Encontro Internacional "O Desafio de Ler e Escrever", realizado em Julho de 2001, demonstrando, com exemplos vários, quanto se subestimava a inteligência e as capacidades das crianças, na aprendizagem da leitura e na criação do estímulo para a mesma. Assim, "com a preocupação quase exclusiva de levar as crianças à memorização de determinados fonemas, os manuais de iniciação à leitura apresentam frases", cujo conteúdo é verdadeiramente anedótico. Eis alguns exemplos: "um perú atira a pêra à parede" (para dar o valor do r entre vogais), "Um pai pula no tapete" (para introduzir o trissílabo), "uma mula deita a lata de tomate à lama" (porque até à altura se tinham trabalhado as vogais e as consoantes t, m, l e d e era preciso articulá-las, mesmo à custa do insólito), uma noiva leva um ramo formado por "uma dália, uma túlipa e uma violeta" (só porque não tendo sido trabalhada a função do s no final das palavras, ela não podia aparecer com um ramo de rosas ou de outras flores...). Destacava ainda a mesma colega a infantilização a que estes manuais sujeitam as crianças, utilizando em vez "de carros, pópós, titis para tias, pipis para frangos, tautau para pancada, dói-dói para ferida, etc.

Uma outra colega do 1º Ciclo, Carmelinda Pereira, da Escola de Algés, informou-me de que o actual esvaziamento de conteúdos nos programas do Secundário, nomeadamente na disciplina de Português, acontecera já no 1º Ciclo, reduzindo ao mínimo o grau de exigência, bem como os conhecimentos a adquirir pelos alunos, facto que levou muitos professores a fotocopiar os manuais antigos.

No seguimento do que já aconteceu no 1º Ciclo, compreende-se a insistência dos proponentes destes novos programas de Língua Portuguesa nos textos ditos "profissionais" e nos textos dos media. Assim, a televisão, para alegria dos alunos, poderá estar presente na sala de aula, com, e cito o programa, "telejornais, reportagens, entrevistas, publicidade" etc, etc, tendo os alunos igualmente acesso a "documentos em suporte de papel", de que destaco, "notícias, pequenos anúncios, publicidade, desenhos humorísticos, horóscopos, palavras cruzadas". Eis, pois, o tão apregoado lúdico nas aulas.

Ao referir expressamente a Escola Básica de Algés quis chamar a atenção para o facto de ter sido uma Escola muito amada pelo grande violinista e maestro, Yehudi Menuhin. Onde quer que esteja, continuará a olhá-la com a mesma ternura com que os meninos lhe chamaram "Sr. Amendoim", aquando da sua visita a Portugal, em 1998. Bem a propósito virão as suas palavras, agora que se teima em anular e amaldiçoar a arte, nela se incluindo a literatura, privilegiando-se desastradamente no Ensino o texto informativo: "É a arte que pode estruturar a personalidade dos jovens cidadãos no sentido da abertura de espírito, do respeito pelo próximo, do desejo de paz. É a cultura, de facto, que permite a cada pessoa enriquecer-se com o passado para participar na criação do futuro. (...) a arte é uma antena preciosa para captar o futuro que não pode ser reservado só a alguns."

Convém acrescentar que a escola Básica de Algés está integrada no projecto MUS-E, cuja "principal função é a de melhorar as condições e as possibilidades educativas de crianças desfavorecidas, através da música, das artes e de várias disciplinas". Na origem está a Fundação Internacional Yehudi Menuhin.

Recuperando a definição de vento, acima mencionada, a qual foi de imediato criticada e substituída por um poema, e relembrando a polémica em torno das notas de exame nas disciplinas de matemática e física do secundário, será interessante recuar até aos finais do século XVI e ouvir as admoestações dos Superiores Gerais de Roma para os Provinciais jesuítas portugueses, focando "o feitio português avesso" às matemáticas e às ciências experimentais. Nesse sentido, e em defesa da eficácia da missionação, advertiam: "Desejamos ardentemente que os nossos religiosos nessa Província Portuguesa cultivem os estudos de Matemática, não somente para exercerem o magistério dessa Faculdade, mas sobretudo para poderem ser enviados à missão da China".

Demagógico seria aceitar o argumento fácil de que os portugueses são pouco aptos para a matemática e ciências experimentais. Onde ontem existia a repressão, impedindo todo o tipo de contestação e perseguindo os dissidentes, "inclinados a novidades ou de inteligência demasiado livre", hoje existe o paternalismo das Ciências da Educação, duvidando das capacidades de professores e alunos e privilegiando a forma em detrimento dos conteúdos. Daí a utilização de argumentos do tipo "impedir aulas de seca", "flexibilização de opções" ou "adequação dos autores às salas de aula", para justificar alterações que anulam a curiosidade, a reflexão, o esforço e o desafio. Não admira, pois, que a competência e actualização científicas dos professores sejam, neste momento, relegadas para lugar de pouco destaque, relevando-se o que se chama de "formação em metodologia de projecto", "formação em avaliação" ou "formação em gestão e desenvolvimento curricular".

O que é grave nas alterações programáticas propostas, e destaco o caso que melhor conheço, ou seja o da disciplina de Português do Secundário, não é apenas a pobreza dos seus conteúdos e a ausência de articulação nos aspectos literários, mas o facto implícito de tomarem como adquirido a falta de conhecimentos que os alunos evidenciam ao terminarem o Ensino Básico. Esta situação não pode, no entanto, justificar as alterações agora propostas, as quais visam, no fundo, perpetuar, até ao final do Secundário, a ignorância dos alunos, com a anuência do Ministério e a indiferença de muitos professores.

Preparam-se, neste momento, os manuais de Língua Portuguesa para os 11º e 12º anos. O Ministério, em nome da qualidade do Ensino, ainda vai a tempo de impedir a repetição dos erros cometidos. A Escola exige-o.

Professora do ensino secundário

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