Público - 19 Jan 04
Beijos Roubados
Por POR LUÍS SALGADO DE MATOS
Notícias da imprensa, da rádio e da televisão assustavam-nos sobre a vida
sexual de jovens portugueses. Mas só eram preocupantes em relação aos
próprios media.
Essas notícias eram baseadas em inquéritos de uma instituição
universitária conhecida. Um quarto das estudantes universitárias afirmava
ter sido coagido a experiências sexuais. Mais de um quarto das
adolescentes entre os 12 e os 17 anos tinham agredido verbalmente rapazes.
Um quinto dos rapazes e um décimo das raparigas tinha agredido fisicamente
alguém. A maioria aprovava a agressão, em certas circunstâncias.
Na fé daqueles números, tidos por representativos, responsáveis ligados
aos inquéritos salientavam na televisão que as vítimas não se queixavam -
e censuravam as que comunicavam a agressão ao melhor amigo: deviam era
dirigir-se a um sexólogo. Mais: recomendavam às polícias que levassem ao
sexólogo as vítimas - e por certo os agressores. Dado o descalabro,
diziam, impunha-se uma educação preventiva em sexologia dos jovens
portugueses.
O panorama era de facto aterrador. Quem lesse essas reportagens seria
tentado a só namorar portugueses depois de ter contratado um segurança ou
comprado um pastor alemão. Como muitas vezes fazem, as televisões
entrevistaram os objectos dos inquéritos: jovens. Ao contrário do
habitual, porém, nenhum dos entrevistados se reconhecia naquele panorama.
Com razão.
Aquelas reportagens revelam uma insustentável ligeireza. Baseavam-se em
inquéritos. Mas esses inquéritos assentavam numa amostra representativa?
Todos sabemos que as sondagens eleitorais têm que ser publicadas com um
ficha técnica. Dos «media» consultados, nenhum considerou dever
informar-nos sobre as respectivas fichas técnicas. Os ditos inquéritos
sairam de uma instituição universitária respeitável e são por certo
exemplares. Mas sem sabermos o seu estatuto, ignoramos se os seus dados
são representativos do universo.
Os «media» não consultaram especialistas independentes sobre esses estudos
que mostram a Universidade portuguesa como uma «remake» do Saló, de
Pasolini. Deviam tê-los consultado. Os dados desafiam o senso comum: as
universitárias portuguesas estarão submetidas a um terror
concentracionário tal que uma em quatro vive sob coacção sexual? Coacção
tão forte que não conseguem denunciá-la?
Este valor foi obtido pela amálgama de categorias muito diferentes. Era
coacção tanto a força física como a palavra. Violar alguém era estatistica
- e moralmente - idêntico a dizer a um conviva: «se não me deres um beijo,
não vou contigo ao cinema».
Esta amálgama é ilegítima. Foram os meios de comunicação social quem
operou esta contaminação? Se foram, são manipuladores. Se foram vítimas
dela, são ingénuos. Porque a estratégia de afirmação dos sexólogos no
mercado laboral não justifica que os portuguesas sejam assustados sem
razão objectiva.
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