Diário de Notícias - 26 Jan 04
Não é de ninguém
João César das Neves
O debate à volta da despenalização do aborto não é uma simples discussão
política. Trata-se de um confronto civilizacional decisivo, onde se joga o
futuro da nossa sociedade. O que está em causa não é a sorte de algumas
pessoas, mas toda a nossa cultura, porque o que se digladia são duas
formas opostas de ver o humano.
O ponto crucial é o de saber a razão por que pessoas sérias e sensatas
consideram aceitável aquilo que milénios de civilização sempre repudiaram.
Uma comparação ajuda a compreendê-lo. Suponha que estava pacificamente a
almoçar num restaurante e alguém o vinha insultar porque, ao deitar fora
os caroços da sua fruta, está a destruir árvores antes de nascerem.
Evidentemente que ficaria surpreendido com a acusação. É verdade que a
laranja é a forma de reprodução da laranjeira. Mas ali a fruta não é
semente, é sobremesa; o caroço não é uma futura planta, é apenas um
incómodo na refeição.
Assim se entende a indignação dos defensores da liberalização do aborto.
Hoje ninguém tem dúvidas que o sexo, tal como a laranja saboreada, tem
como único objectivo o prazer. Que desse divertimento resulte um embrião é
um percalço desagradável que, tal como o caroço, deve ser removido de
forma higiénica e expedita. Por isso se vê tanta irritação à volta do
julgamento de mulheres que abortaram. Elas não fizeram mal nenhum. Apenas
limparam alguns efeitos laterais do seu legítimo deleite.
Como é possível que, neste mundo sofisticado e desenvolvido, um ser humano
fique reduzido à condição de detrito removível? Uma canção popular pode
ajudar-nos a entendê-lo. Num álbum significativamente intitulado O Caminho
da Felicidade, os Delfins incluíram o tema Nasce Selvagem. A letra afirma
«Mais do que a um país, que a uma família ou geração, mais do que a um
passado, que a uma história ou tradição, tu pertences a ti, não és de
ninguém... Mais do que a um patrão, que a uma rotina ou profissão, mais do
que a um partido, que a uma equipa ou religião, tu pertences a ti, não és
de ninguém... Vive selvagem e para ti serás alguém. Nesta viagem, quando
alguém nasce, nasce selvagem, não é de ninguém» (M. Ângelo/F. Cunha).
Note-se como esta canção exprime bem um dos mitos definidores do nosso
tempo. A liberdade total é o nosso grande sonho e a confiança na natureza,
com tons ecológicos, o meio de lá chegar. A sociedade é corrupta, prende e
destrói. Ser selvagem é a ânsia de todos hoje, sobretudo os jovens.
Mas, ao mesmo tempo, é importante notar a espantosa mentira em que se
baseia o poema. Quando alguém nasce, se for de ninguém, morre logo. Um
bebé é completamente dependente, nada livre. Mas se pertencer a uma
família, se for acolhido pela sua geração, numa história e tradição, então
torna-se gente. E, ainda mais, se se integrar numa equipa, num partido, se
confessar uma religião, se aprender uma profissão e tiver emprego e
patrão, então poderá
ser um cidadão livre, ganhar a vida, não ser de ninguém. A canção diz
exactamente o oposto da verdade evidente.
Assim é fácil de comprender de onde vêm as terríveis distorções que nos
rodeiam, conduzindo à infâmia suprema, o aborto. Na busca da liberdade
selvagem, cada um toma o seu prazer como absoluto, mesmo que isso destrua
os frágeis que perturbam esse gozo. Ao acreditar que quem nasce não é de
ninguém, a sociedade impõe que, antes de nascer, não se seja ninguém.
naohaalmocosgratis@fcee.ucp.pt
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