Diário de Notícias - 15
Jan 07
O rejuvenescimento da população
João César das Neves
O fenómeno mais influente na nossa geração tem pouco
a ver com telemóveis, Internet ou globalização. É
simplesmente o facto de todos nós irmos viver muito
mais tempo que os nossos pais. Esse facto é muito
mais revolucionário que a tecnologia, a mudança de
costumes ou a integração económica. Mas poucos
parecem dar-se conta disto. Perde-se tanto tempo a
falar do aborto e da China, da bioética e da
pirataria informática, mas passa-se ao lado da
verdadeira revolução que nos assola.
Isso não espanta. O mundo evolui mais depressa que
as nossas teorias acerca dele. O mais patético é
contemplar uma sociedade agitada mas incapaz de
entender o que realmente se passa com ela.
Em Portugal, a esperança de vida ao nascer era de 38
anos em 1920, 68 em 1970 e neste momento é quase de
80 anos e continua a subir. Mesmo nas zonas mais
pobres esse efeito domina: a África subsariana tem
uma esperança de vida ao nascer que, apesar de
miserável, subiu de 40 para 46 anos nos últimos 40
anos, um aumento maior que em todos os séculos
anteriores. Estimativas científicas, ainda muito
rudimentares, dizem que estas melhorias na saúde e
na longevidade representam para a humanidade um
valor muito superior a quaisquer desenvolvimentos no
produto nacional (Kevin M. Murphy & Robert H. Topel,
2005. The Value of Health and Longevity, NBER
Working Papers 11405). Este é mesmo o fenómeno
decisivo do nosso tempo: vamos todos morrer muito
mais tarde do que pensamos.
O mais extraordinário é que esta verdadeira
revolução na humanidade só entra no nosso discurso
corrente sob temas como "envelhecimento da
população" ou "crise da Segurança Social". Ora isso
é precisamente o oposto do que está acontecer. O que
existe é um rejuvenescimento das pessoas idosas, o
que devia facilitar, não prejudicar, a Segurança
Social.
Por outro lado, é incrível que a reacção política
comum seja reduzir a idade de reforma. As pessoas
estão válidas cada vez até mais tarde, mas deixam de
produzir cada vez mais cedo. Esta monstruosa tolice
passa com a maior naturalidade e são os próprios que
se querem condenar a uma vida de ociosidade quando
ainda têm pela frente mais de 20 anos de capacidade.
O mundo evolui mais depressa que a nossa compreensão
dele. Ninguém parece tirar as reais consequências de
só nos sentirmos velhos em idades que os nossos
antepassados nunca atingiam.
Mas o mais surpreendente é que até as empresas,
normalmente tão rápidas a captar oportunidades,
ainda não entendem esse magno potencial.
Os empregadores são os primeiros a considerar que os
trabalhadores acima dos 50 anos estão obsoletos e
devem ser substituídos por jovens. Jovens que, por
acaso, cada vez há menos (este é o outro lado do tal
envelhecimento). Assim, o aparelho produtivo
moderno, aplicando critérios da era industrial de
Oitocentos, ignora o maior potencial económico da
actualidade, a capacidade de hoje se sentir aos 70
como antes aos 40.
No entanto, a economia e a sociedade acabam sempre
por integrar as suas forças, mesmo para lá da tolice
dos seus membros. Não é possível omitir uma explosão
de energia com esta dimensão. O fenómeno do
voluntariado é, entre muitos outros, uma resposta
que permite a integração dessa força.
Extraordinariamente influente nos países mais
avançados e crescendo visivelmente em Portugal, ele
é impulsionado sobretudo por reformados e
universitários, aquela "população activa" que as
empresas não sabem aproveitar.
O mais irónico é que essa actividade voluntária, que
até agora se tem limitado à acção social e cultural,
começa a enveredar por iniciativas mais mercantis.
Não tarda muito que vejamos associações recreativas,
"centros de dia", ONG ou até verdadeiras firmas
criadas por reformados utilizarem o seu potencial
produtivo. Nessa altura, teremos idosos a concorrer
no mercado com as mesmas empresas que já não os
consideram úteis. Com o pequeno detalhe que, graças
à sua situação, eles podem praticar preços
absolutamente imbatíveis. Por causa das suas
reformas, que são pagas com os impostos dos
trabalhadores, será possível que vendam a preços que
os trabalhadores nunca conseguirão igualar.
Nessa altura vai-se falar muito de "concorrência
desleal", de abusos da terceira idade, de perversão
do Estado-Providência. Mas os mais inteligentes
compreenderão o terrível erro de subestimar a
dinâmica mais determinante da sua época. O
ajustamento pode ser doloroso e conflitual, mas
acabará por se dar.