Público - 24 Jul 03
COMO SE FALA DO AMOR?
Por PEDRO STRECHT
Muito recentemente foram revelados dados sobre a situação da sida em Portugal,
que, como tem sido discutido, têm contornos muito negativos e preocupantes,
sobretudo se forem olhados na comparação com outros países da União Europeia (UE).
Segundo o que foi publicado pelo PÚBLICO, existirão cerca de nove mil doentes,
sendo a probabilidade do número de infectados atingir um valor tão alto como 30
mil a 40 mil. Vale desde já a pena lembrar que muitos desses eventuais
infectados não terão a mínima ideia que, de facto, podem ser portadores do
vírus. À situação geral, acresce o facto triste de Portugal ser o único
país da UE que mantém ainda taxas de aumento da doença, essencialmente à custa
da população heterossexual e toxicodependente. Mesmo se olharmos para toda a
Europa, só a Ucrânia consegue pior. É impressionante.
Depois, lemos também que é urgente fazer campanhas de sensibilização da
população jovem, que é facilmente a de maior vulnerabilidade; em franco período
activo da sua vida sexual, é compreensível que se queira incidir sobre os
rapazes e raparigas adolescentes. É sobre esse assunto que vale então a pena
pensar sobre algumas questões importantes.
De facto, desde que nos longínquos anos 80 se começou a falar da doença, que a
sua distribuição se modificou de forma extremamente importante. Inicialmente
ligada aos grupos de adultos homossexuais com uma vida promíscua, os doentes com
sida eram alvo de uma discriminação social muito forte. Mas, de verdade, os anos
foram trazendo mudanças sobre o espectro de incidência da sida e, a pouco e
pouco, a doença foi homogeneamente dizendo respeito a todos os grupos de
pessoas, independentemente da sua orientação sexual predominante, ao mesmo tempo
que se ia igualmente instalando no grupo dos consumidores de drogas com ingestão
endovenosa, a partir da partilha de seringas. Para o bem e para o mal, a sida
passou a dizer respeito a todo e qualquer cidadão, independentemente do seu
papel, estatuto ou orientação sexual; de grupos de risco passou-se então a falar
de comportamentos de risco.
Hoje, anos depois, após muito investimento global de comissões governamentais e
do trabalho de organizações não governamentais de que é impossível não destacar
a Abraço, o panorama mudou. Perante um país de tradições culturais pobres, com
uma vivência da sexualidade muito fechada em nós cegos de uma rigidez social e
cultural muito espessa, podemos dizer que a aceitação da doença é completamente
diferente, que o conhecimento sobre as suas formas de disseminação é mais
intenso. Acresce ainda que, felizmente, as hipóteses de intervenção médica sobre
a doença melhoraram espectacularmente e, de uma forma geral, a sida já não é
mais considerada uma doença fatal, mas uma doença de evolução crónica.
O que se passa então que explique este estado de desgraça e, por isso, de enorme
risco em termos de saúde pública, em que todos nos encontramos? Provavelmente,
muitos factores, mas é possível que a prática de intervenção em saúde mental
infantil e juvenil ajude a esclarecer alguma coisa.
A primeira questão é que qualquer comportamento resulta sempre de determinado
funcionamento mental, isto é, depende das coisas que consciente ou
inconscientemente se sentem ou pensam. No caso, os comportamentos sexuais, quer
sejam de risco ou não, têm obviamente a ver com a organização emocional da
sexualidade, que, como é sabido, se inicia muito antes da adolescência. Já é
preciso recuar muito no tempo para não se aceitar que existe uma organização da
sexualidade desde a infância, embora de forma diferente da vivência genital
adolescente e adulta. E para essa organização ocorrer de forma saudável é pelo
menos necessário que exista um investimento afectivo de ambos os pais na
criança, ou seja, que a criança seja seu objecto de amor incondicional, que os
pais funcionem como modelo de relação de casal, e que se ofereçam como modelos
de identificação feminina e masculina para os seus filhos. Parece
extraordinariamente simples, mas são comuns os casos em que pelo menos uma
destas premissas não se cumpre de forma eficaz; se a isso juntarmos uma série de
condicionantes socioculturais que, cada vez mais, dão aos mais novos informação
e experiências de conteúdo sexual distorcido, então podemos compreender como
aumentaram os riscos para determinados comportamentos sexuais disfuncionais.
Sendo assim, o que hoje encontramos é um número crescente de adolescentes que
vive a sua sexualidade de forma desintegrada das respectivas vivências
afectivas. De uma forma muito simples, pratica sexo sem conhecer o amor. E,
imensas vezes, fá-lo projectando modelos completamente distorcidos, em que
abundam as expectativas irreais de um desempenho de sensação major com uma
envolvência e investimento afectivo menor. Não vale a pena ir muito longe: basta
escutar o que muitas raparigas esperam delas próprias e de um rapaz no decorrer
de uma relação. Mas o caso piora bastante, ou pelo menos ainda é mais visível,
no que toca aos rapazes: a modelação por referências externas (sobretudo de
grupo) de uma cultura "macho" induz a estados de funcionamento psíquico onde a
desvalorização do próprio é notória, embora se exteriorize sistematicamente pelo
oposto. A experiência da nossa área demonstra como é tantas vezes necessário
ajudá-los a fazer uma leitura dessas fantasias e a elaborá-las de uma forma mais
tranquila e harmónica.
Ora, o grande desafio para prevenir estes comportamentos, que é simultaneamente
a maior dificuldade, é atingir o coração destes miúdos, e sempre que se falar de
sexo, falar-se de amor. Claro que tudo isso é muito mais complicado, bate mais
fundo e, sobretudo, mexe connosco, com a nossa própria vivência adulta, com a
experiência adolescente e infantil de cada um de nós. Mexe com as emoções e não
apenas com as sensações, mexe com os afectos, com os sentimentos e, por último,
com os pensamentos e a forma como os articulamos e desenvolvemos na relação com
os outros.
Aliás, é muito engraçado verificar como a conversa toca e flui, quando se tem
oportunidade de falar destes assuntos com rapazes e raparigas adolescentes. Só
que tudo isso implica muito mais do que lhes andamos a dar: implica uma mudança
de atitude que permita que, em vez de números, se fale de pessoas e com pessoas,
que, em vez de se modificarem comportamentos, se compreenda o que os origina
interiormente, e que, em vez de se ler a sexualidade a partir de um modelo
fisiológico, que o façam baseando-se na sua vivência emocional.
No fundo, o que é preciso fazer é ajudar os mais novos a ter uma vivência da
sexualidade mais gratificante, quer dizer, mais serena, mais confiante, mais
amada, para que vivê-la não seja assumir um desnecessário risco de vida. Para
que, afinal, o dia-a-dia não tenha tantos conflitos com a morte, justamente em
idades em que se deveria experimentar o amor.
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