Diário de Notícias - 7 Jul 03
Abominação da dominação
João César das Neves
As armas atómicas matam mesmo quando não existem. Depois da guerra do Iraque
sabemos que as armas nucleares matam até quando não estão lá.
Os Estados Unidos invadiram um país e morreram multidões de ambos os lados. Não
se sabe bem a verdadeira razão da guerra, mas não há dúvidas que o motivo
alegado, a justificação apresentada, a razão oficial foi que o Iraque tinha
armas de destruição maciça. Que não tinha. Mas não foi precisa a existência.
Bastou a possibilidade. A fama da abominação chegou para invadir.
Fama essa que, aliás, se baseia numa confusão. A única verdadeira «destruição
maciça» é nuclear, que se sabia que o Iraque nunca teve. As armas que ele
poderia ter tido, mas não tinha, eram químicas e biológicas, as quais, na
prática, pouco mais mortais são que o napalm ou os bombardeamentos. Mas ganharam
um acréscimo de aversão ao serem classificadas junto com a bomba. Assim, bastou
a referência a armas menores da mesma classe, que por acaso nem existiam, para
legitimar a guerra. As bombas nucleares já assustam por procuração.
Toda esta história pareceria insólita, incompreensível mesmo, se não se tiver em
conta um facto único. Desde as 08.15 de 6 de Agosto de 1945 o mundo vive à
sombra do cogumelo. Nasceu então a abominação da desolação, uma arma que destrói,
não um punhado de homens como a granada, não um prédio como a dinamite, não um
quarteirão como o bombardeiro, mas uma cidade inteira de uma só vez.
A História nunca mais foi a mesma. A humanidade suporta há 57 anos uma desolação
sem precedentes, uma abominação tal que chega para dar credibilidade às tolices
mais monstruosas.
A causa expressa da invasão do Iraque foi a alusão inconsciente ao cogumelo de
Hiroxima. Mesmo quando ele não podia existir. O pavor chegou. E o pavor
permanece.
A capacidade de destruição da bomba é avassaladora. A primeira vítima, como se
vê, é a civilização. Os dois cogumelos, os únicos dois cogumelos da História
foram criados, não por tiranos homicidas, não por ideologias assassinas, não por
forças retrógradas, mas pela suprema cultura humanista, pelo Ocidente mais
tolerante, pela América mais liberal.
A bomba, até hoje, destruiu duas cidades e toda a confiança no progresso humano
e no seu motor primordial, a ciência.
O cogumelo de Hiroxima fez explodir a maçã de Newton.
O ser humano vinha convencido de que os avanços da cultura humanista o conduziam
à sociedade perfeita. O ser humano tinha a certeza de que a tolerância do
Ocidente cosmopolita ia conseguir o progresso imparável. O ser humano estava
seguro de que os avanços maravilhosos da maçã de Newton controlariam o seu
destino. Até que o cogumelo de Hiroxima lembrou a maçã de Adão.
De repente, ficou claro que as maiores realizações do espírito humano conduzem
ao maior horror da História. A civilização e a ciência perderam a candura. Os
sumos sacerdotes do progresso, cientistas teóricos, analistas pacíficos e
curiosos criaram o pânico planetário.
A humanidade iluminista construiu um templo. A humanidade moderna edificou um
santuário. A humanidade progressista elevou um altar. A humanidade humanista
colocou no sacrário a maçã de Newton. Mas quando ajoelhou contemplou a
abominação da desolação.
A abominação de facto não há. Há 57 anos que não há cogumelos. Há 14 anos que
não há corrida aos armamentos. Mas as armas atómicas são as únicas que matam
mesmo quando não há.
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