Público - 17 Jul 06

O caso dos exames, espelho do país

Mário Pinto

1.Mais uma vez a realização de exames nacionais vem lembrar que continua por resolver o grave problema da qualidade do ensino escolar. Mas não foi isso o que constituiu objecto da gritaria levantada nestes dias. Mais uma vez, também, em vez de se questionarem as causas dos maus resultados, o motivo das emoções foi a própria avaliação. Deste modo, e pela clássica manobra da diversão, evita-se defrontar a verdadeira questão, que é a falência do sistema público de ensino, e cria-se um outro problema: o dos exames. Recorde-se o que tem sido a grande resistência do "establishment do eduquês" contra os exames nacionais, e até contra a publicação nacional dos resultados e correspondente graduação. Pretende-se que o sistema é bom, mesmo contra maus resultados; e que o que está sempre mal é a sua avaliação.

2. Creio que temos um problema nacional com a instituição fundamental da avaliação. Em termos gerais, as nossas práticas de avaliação são mal-amadas e funcionam em termos injustos, porque não distinguem seriamente o mérito. Desde as carreiras nas empresas privadas, em grande parte reguladas por convenções colectivas burocratizantes quanto podem, até às carreiras na função pública, que têm na sua base a progressão pela antiguidade e pela classificação de muito bom atribuída a toda a gente (agora vai ser proibido), o reconhecimento do mérito é anulado pela estabilidade formal igual para todos e pela progressão de via burocrática (sobretudo nos empregos, mas não só). Como se uma sociedade sem retribuição do mérito, isto é, sem prémios nem castigos, pudesse funcionar com justiça e progresso.

3. Está enraizada na cultura institucional do nosso regime (desde o texto constitucional e em grande medida por decorrência dele) uma mentalidade de igualitarismo não competitivo, advogado sobretudo pelas esquerdas ideológicas em nome da defesa dos pobres e excluídos e sob a ideia da justiça social. Mas erradamente. A defesa dos pobres e excluídos tem de facto de fazer-se em nome da justiça, primeiro, e em nome da solidariedade, de modo complementar. Mas a justiça (e em matéria de justiça é preciso distinguir a justiça retributiva e a justiça social) não pede que se elimine a competição e a avaliação. Pelo contrário: é precisamente quando não há competição nem avaliação comparativa, ou seja, quando tudo se igualitariza e se "garantiza", que não poderá haver justiça - apenas poderá criar-se uma falsificação da justiça, que é o igualitarismo burocrático. E custe o que custar, só há um caminho para a justiça do mérito, que é competir, comparar e avaliar. É sem dúvida tarefa da solidariedade apoiar e socorrer os que necessitarem; mas o que é devido por solidariedade não absorve toda a justiça. Por outras palavras: a justiça social não substitui nem anula a justiça retributiva, mas apenas a complementa. Mais ainda: a solidariedade é dever geral, e não apenas dos que mais têm ou podem; também na pessoa dos pobres e fracos a solidariedade pede o cumprimento do dever universal de esforço e do respeito pela justiça ao outro.

4. Se entre nós se reconhece como real a tendência do nosso regime para a fuga à competição e à avaliação do mérito, bem como a dominância de mecanismos garantistas da estabilidade burocrática e formal em estatutos vitalícios de direitos adquiridos, então conviria contrariá-la. Pacheco Pereira escreveu, há dias, sobre a necessidade de "uma oposição liberal moderada" (ou de uma "oposição liberal reformista"); nos claros e gerais termos em que se exprimiu, tem toda a razão. É sem dúvida necessária uma fundamental correcção racional e doutrinária do nosso sistema político e institucional: e essa correcção deve ir na direcção da ênfase nas liberdades, direitos e deveres pessoais fundamentais - com especial revisão dos institutos político-ideológicos de satisfação burocrática dos direitos sociais, que têm o duplo efeito de gerar totalitarismo no Estado e burocratismo na sociedade civil.
5. O liberalismo foi a maior revolução da história política mundial. Veio colocar o indivíduo (prefiro dizer: a pessoa) na posição de liberdade e de igualdade originárias, perante o poder político, que foi milenarmente o grande opressor. Quem pode ser contra isso? Sucedeu que, depois, o funcionamento dos regimes moldados em nome desta magnífica libertação mostrou que, no plano económico sobretudo, os que já eram social e economicamente desfavorecidos e os que entravam em perda ou desfavorecimento podiam cair em posições de extrema carência e indignidade. Porquê? Porque, além da liberdade e da igualdade de direitos, não foi implementada a fraternidade (ao menos no seu mínimo político, que é a solidariedade), para assim se completar o lema da revolução. Com isso foi frustrada a dimensão comunitária da pessoa, ficando apenas em jogo um individualismo impiedoso e funesto. Crítica esta muito acertada, que historicamente foi feita pela doutrina social da Igreja sem com isso subscrever a crítica socialista.

6. Hoje, as modernas democracias de "estado social" pretendem realizar a harmonia da liberdade, da igualdade e da solidariedade. Mas, sobretudo as que nasceram sob uma ideia socialista, como a nossa, sacrificaram as liberdades individuais (com a respectiva responsabilidade) ao igualitarismo colectivista, que, além de injusto, gerou o burocratismo e a ineficiência. Não nos esqueçamos de que em 1976 consagrámos o socialismo na nossa Constituição. Sem qualquer sentimento masoquista, recordo (a benefício dos muitos que não têm memória disso) o célebre artigo 80º: "A organização económico-social da República Portuguesa assenta no desenvolvimento das relações de produção socialistas, mediante a apropriação colectiva dos principais meios de produção e solos, bem como dos recursos naturais, e o exercício do poder democrático das classes trabalhadoras". Nem o "poder democrático" escapava à ditadura das classes trabalhadoras, excluindo os restantes cidadãos. Este artigo está hoje revisto; mas, apesar das revisões parciais, restam ainda vários normativos na Constituição que mantêm as raízes de 76 e alimentam o seu espírito. Assim, uma revisão da Constituição impõe-se.

7. Tem por isso razão Belmiro de Azevedo, e tantos outros que periodicamente levantam o mesmo problema. Não é por acaso que, ainda hoje, o Partido Comunista continua a ser o defensor oficioso do texto constitucional e o opositor a todas as revisões. É que a Constituição impede reformas necessárias naquela direcção de um "liberalismo social" e (acrescento eu) de índole personalista.

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