Diário de Notícias
- 21 Jul 06
O
Ocidente, a família e o Papa
Maria José Nogueira
Pinto
A
correcção política e o discurso dominante constituem
os instrumentos de verbalização do relativismo
moral. De facto, o relativismo moral precisava de um
"nim", ou seja, um nem sim nem não, onde coubesse
sem estorvo isto e o seu contrário. Se a correcção
política administrada em doses maciças está já a
saturar o cidadão comum e a envergonhar os supostos
intelectuais, o relativismo moral progride no seu
intuito desconstrutivista operando, só por si,
transformações que não sendo nem pensadas nem
digeridas pela maioria das pessoas, têm contudo
consequências na vida de todos nós.
A família foi um dos alvos mais importantes desta
nova "cultura". A verbalização do primeiro ataque
limitou-se à substituição do singular pelo plural:
famílias. Ficou estabelecido que era politicamente
incorrecto o singular, pois tal seria a negação ou a
recusa do reconhecimento de outras realidades
igualmente dignas de atenção: a família nuclear, a
família alargada, a família monoparental, as uniões
de facto, etc...
As novas categorias apareciam como conquistas dos
tempos modernos e a família, a tal, passou a ser
referida como a "tradicional", uma espécie residual
em vias de extinção. E como este era o discurso
dominante, quase ninguém exprimiu a dúvida
pertinente quanto aos benefícios destas conquistas.
As famílias monoparentais, sabemos, resultam na sua
esmagadora maioria do facto de os homens abandonarem
as mulheres e os filhos, ficando estas entregues a
si próprias e à dura missão de prover às
necessidades da família agora reduzida a um único
adulto, a mãe. Esta monoparentalidade é, aliás, um
dos factores que mais contribui para a crescente
feminização da pobreza. Por outro lado, a distinção
conceptual entre família nuclear e alargada resulta
de meras circunstâncias: a exiguidade da habitação,
a especulação imobiliária e uma lei do arrendamento
totalmente desadequada, o êxodo forçado dos mais
novos para as periferias, a morte dos bairros, tudo
forçando o afastamento entre avós, filhos e netos,
reduzindo a capacidade de entreajuda, a
complementaridade nos afectos e nas tarefas, a
convivência plurigeracional e aumentando a solidão e
o sentimento de desamparo dos mais velhos. Em
Espanha, onde tudo é avaliado, os números indicam
que poucos recorreram à união de facto, após a
entrada em vigor da nova lei, sendo possível
concluir que não seriam muito numerosas as
pendências nesta matéria... Em breve teremos os
números dos casamentos celebrados entre
homossexuais.
Quando o Papa Bento XVI se reúne em Valência com
milhares de famílias vindas de todo o mundo e
portadoras de um testemunho de vida, estamos sem
dúvida perante um acto religioso de confirmação de
valores morais cristãos e, nessa medida,
aparentemente só relevantes para os que professam
esta fé. Mas não me parece que assim seja. Porque o
Papa veio, também, relembrar a uma sociedade confusa
e inquieta o valor da família como o pilar que
sustenta o indivíduo e a sociedade, da família como
o âmbito privilegiado onde cada pessoa aprende a dar
e a receber amor, da família como instituição
intermédia entre o indivíduo e a sociedade
insubstituível nessa mediação porque assente numa
profunda relação interpessoal, da família como uma
escola de humanização do homem no seu processo de
crescimento, da importância dos avós na memória dos
afectos, nas raízes e no testemunho de vida. Nada
muito diferente do que ficou dito no rescaldo do Ano
Internacional da Família promovido pelas Nações
Unidas, quando os países contabilizaram os enormes
prejuízos decorrentes da fragilização do tecido
familiar e da transferência para o Estado de funções
desde sempre cometidas à família. Prejuízos visíveis
na incapacidade de resposta dos sistemas sociais, no
aumento da delinquência, das dependências, do
abandono, da solidão, das novas doenças.
É, afinal, o reconhecimento do
interesse público da
família, o mesmo reconhecimento que levou
o legislador a dar-lhe particular tratamento no
Código Civil. Porque só assim se entende a redacção
do artigo 1577 que inclui na noção de casamento,
como um dos requisitos, o intuito de constituir
família, mediante uma plena comunhão de vida. Na
verdade, se não fosse reconhecido este interesse
público, estaríamos apenas no domínio da moral e não
faria sentido que o legislador viesse dispor sobre
os termos em que esta "plena comunhão de vida" se
processa.
Sempre se poderá dizer que basta mudar a norma para
varrer a consagração daquilo que é sobretudo
antropológico. Mas sabemos que se umas dezenas de
deputados podem mudar a lei, não poderão certamente
mudar a natureza das coisas. E não vale a pena
confundir a necessidade, que todos reconhecemos, de
tratar juridicamente novas realidades sociais, com a
subversão absoluta de instituições indispensáveis à
saúde e ao desenvolvimento da pessoa e das
comunidades. Sobre esta como sobre tantas outras
questões relevantes, as sociedades ocidentais vivem
tempos de confusão. Pensar assim é malvisto pelos
"donos" do pensamento dominante que actuam como
censores ditatoriais, banindo os desconformes e
silenciando os críticos. O resultado é a
impossibilidade prática de reflectir nas
consequências das escolhas. Que para serem livres
precisam de ser reflectidas.
Bento XVI reflectiu muitos anos como teólogo e
cardeal Ratzinger sobre tudo isto. E sobre a grande
crise que a Europa atravessa, de dúvida profunda
sobre si mesma, dos valores que sedimentaram a sua
cultura, do seu lugar no mundo, da sua matriz,
afundando-se numa decadência lenta e dolorosa. Para
os católicos a escolha do tema - a família - do
momento e do local, tem particular e inequívoco
significado no cumprimento da missão pastoral e
evangelizadora do Papa. Mas, para todos, as suas
palavras libertas podem constituir matéria de
reflexão. O que torna esta viagem ainda mais
oportuna. |