Expresso online - 30 Jun 05

Embrulhada atrás de embrulhada
José António Lima

Não bastava o episódio caricato e descredibilizador de vermos o ministro das Finanças obrigado a rectificar atabalhoadamente o seu próprio Orçamento rectificativo. Dois dias depois, o PS, José Sócrates e Alberto Martins voltam à carga, de forma desajeitada, com a já esfarrapada (por eles próprios) bandeira do referendo do aborto. Parecendo apostados em arranjar uma embrulhada atrás de outra embrulhada.

Percebe-se que o cancelamento do referendo europeu tenha reaberto uma janela de oportunidade para a realização, a mais curto prazo, do referendo sobre a interrupção voluntária da gravidez.

Mas, com eleições autárquicas no início de Outubro e eleições presidenciais no início de Janeiro, só mentes cronicamente obstinadas e pouco clarividentes insistiriam em encaixar, à pressa e à pressão, uma consulta referendária entre esses dois actos eleitorais. Dispondo-se, ainda por cima e para tal, a atropelar prazos legais, a alterar legislação às três pancadas, a forçar mais um «braço-de-ferro» inconsequente e inútil com o Presidente da República.

Percebe-se que, num momento em que a administração pública é alvo de inadiáveis medidas de restrição orçamental e de limitação de regalias adquiridas e num partido como o PS que tem no funcionalismo público uma das suas matrizes e principais bases de apoio, não seja fácil resistir à tentação destas «flores de esquerda». José Sócrates cala assim, temporariamente, as vozes da ala esquerda do partido mais críticas e incomodadas com as políticas de austeridade do Governo. E imagina que esta compensação das medidas impopulares do Executivo com o desfraldar de uma «causa de esquerda» terá, junto da opinião pública, efeitos favoráveis na imagem dos socialistas e na sua própria imagem.

Mas a ideia que passa desta iniciativa, forçada na forma e ineficaz nas consequências, é menos a da defesa genuína e desinteressada de valores de esquerda e mais a de um expediente para desviar as atenções de outros problemas e para serenar descontentamentos partidários.

Percebe-se, também, que Sócrates e o PS, contando com um «Sim» maioritário dos eleitores no referendo do aborto, queiram equilibrar as previsíveis derrotas nas autárquicas e nas presidenciais com uma vitória eleitoral, mesmo que seja um referendo.

Mas o efeito compensatório dessa «vitória», além de diminuto e dificilmente monopolizável, faria até mais sentido a seguir às presidenciais do que encaixado e diluído entre duas eleições intervaladas por três meses.

Percebe-se tudo isto e até o argumento falacioso e pouco inteligente de alguns socialistas de que será mais difícil realizar o referendo do aborto com Cavaco na Presidência da República. O que é mais difícil perceber é que o PS continue, desde há três meses e ininterruptamente, a dar tiros nos pés com as trapalhadas sucessivas em que envolveu este referendo, sobretudo com a contribuição desastrada de Alberto Martins. O que não se percebe é que José Sócrates não anteveja a inexequibilidade de mais esta proposta e os efeitos politicamente contraproducentes que recairão sobre o PS.

O que não se percebe, acima de tudo, é que o PS esteja a transformar um referendo cuja realização está mais do que assegurada num episódio de folclore político e numa manobra de diversão partidária. Que apenas servem para retirar importância e seriedade ao problema da interrupção voluntária da gravidez. E ao próprio referendo.

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