Não bastava o episódio caricato e
descredibilizador de vermos o ministro das Finanças obrigado a
rectificar atabalhoadamente o seu próprio Orçamento
rectificativo. Dois dias depois, o PS, José Sócrates e Alberto
Martins voltam à carga, de forma desajeitada, com a já
esfarrapada (por eles próprios) bandeira do referendo do aborto.
Parecendo apostados em arranjar uma embrulhada atrás de outra
embrulhada.
Percebe-se que o cancelamento do referendo
europeu tenha reaberto uma janela de oportunidade para a
realização, a mais curto prazo, do referendo sobre a interrupção
voluntária da gravidez.
Mas, com eleições autárquicas no início de
Outubro e eleições presidenciais no início de Janeiro, só mentes
cronicamente obstinadas e pouco clarividentes insistiriam em
encaixar, à pressa e à pressão, uma consulta referendária entre
esses dois actos eleitorais. Dispondo-se, ainda por cima e para
tal, a atropelar prazos legais, a alterar legislação às três
pancadas, a forçar mais um «braço-de-ferro» inconsequente e
inútil com o Presidente da República.
Percebe-se que, num momento em que a
administração pública é alvo de inadiáveis medidas de restrição
orçamental e de limitação de regalias adquiridas e num partido
como o PS que tem no funcionalismo público uma das suas matrizes
e principais bases de apoio, não seja fácil resistir à tentação
destas «flores de esquerda». José Sócrates cala assim,
temporariamente, as vozes da ala esquerda do partido mais
críticas e incomodadas com as políticas de austeridade do
Governo. E imagina que esta compensação das medidas impopulares
do Executivo com o desfraldar de uma «causa de esquerda» terá,
junto da opinião pública, efeitos favoráveis na imagem dos
socialistas e na sua própria imagem.
Mas a ideia que passa desta iniciativa,
forçada na forma e ineficaz nas consequências, é menos a da
defesa genuína e desinteressada de valores de esquerda e mais a
de um expediente para desviar as atenções de outros problemas e
para serenar descontentamentos partidários.
Percebe-se, também, que Sócrates e o PS,
contando com um «Sim» maioritário dos eleitores no referendo do
aborto, queiram equilibrar as previsíveis derrotas nas
autárquicas e nas presidenciais com uma vitória eleitoral, mesmo
que seja um referendo.
Mas o efeito compensatório dessa «vitória»,
além de diminuto e dificilmente monopolizável, faria até mais
sentido a seguir às presidenciais do que encaixado e diluído
entre duas eleições intervaladas por três meses.
Percebe-se tudo isto e até o argumento
falacioso e pouco inteligente de alguns socialistas de que será
mais difícil realizar o referendo do aborto com Cavaco na
Presidência da República. O que é mais difícil perceber é que o
PS continue, desde há três meses e ininterruptamente, a dar
tiros nos pés com as trapalhadas sucessivas em que envolveu este
referendo, sobretudo com a contribuição desastrada de Alberto
Martins. O que não se percebe é que José Sócrates não anteveja a
inexequibilidade de mais esta proposta e os efeitos
politicamente contraproducentes que recairão sobre o PS.
O que não se percebe, acima de tudo, é que o
PS esteja a transformar um referendo cuja realização está mais
do que assegurada num episódio de folclore político e numa
manobra de diversão partidária. Que apenas servem para retirar
importância e seriedade ao problema da interrupção voluntária da
gravidez. E ao próprio referendo.