Aron criticou a adesão dos intelectuais a uma fé
secularista, com a qual procuravam substituir a fé
cristã que tinham perdido
Entre domingo e terça-feira passada decorreu no
Estoril o primeiro colóquio da Liberty Fund em
Portugal. O tema escolhido foi ‘Liberdade e
responsabilidade pessoal no pensamento de Raymond
Aron’. Durante dois dias, em estrita clausura e
absoluta pontualidade, dezasseis participantes e
dois observadores - de Portugal, Europa e América -
cruzaram argumentos e interrogações sobre cerca de
250 páginas de textos de Raymond Aron. O ponto de
partida e de chegada, com vários outros temas pelo
caminho, foi a crítica de Raymond Aron ao marxismo e
ao que designou por “ópio dos intelectuais”. Uma
parte dessa crítica é hoje muito conhecida. Os
factos derrubaram de vez as pretensões científicas
do marxismo e confirmaram o que Aron dissera há mais
de cinquenta anos.
Mais intrigante foi o exacto significado atribuído
por Aron à expressão ‘religião secular’ - com que
designou o marxismo - e a sua defesa de uma postura
céptica perante a acção política. Estava Aron a
criticar as religiões em geral e a advogar um
cepticismo filosófico global?
A minha interpretação não é essa. Aron - tal como
Popper, Hayek e Oakeshott - estava a criticar a
adesão dos intelectuais a uma fé secularista, com a
qual procuravam substituir a fé cristã que tinham
perdido. Mas, enquanto a fé cristã partia da
imperfeição incontornável do homem e por isso
excluía o alcance da perfeição na vida terrena, Marx
e os marxismos propunham a salvação na terra.
Ao assentar na imperfeição do homem, a fé cristã
abraça uma visão pluralista da vida social. A cidade
do homem não pode igualar a cidade de Deus. Haverá
sempre um hiato entre os nossos padrões morais e a
nossa capacidade de os realizar. A moral será por
isso dotada de uma autonomia que não é subsumível na
esfera política, ou da ciência, ou mesmo da arte.
Deste pluralismo emerge uma tensão e uma conversação
sempre inacabada que constitui talvez o elemento
mais distintivo e mais dinâmico da civilização
ocidental: está aí a raiz da liberdade e
responsabilidade pessoal.
Marx, pelo contrário, procurou criar uma ideologia
monista e total em que moral, ciência e sentido da
história são reconciliadas num projecto de salvação
através da acção política. O resultado mais trágico
e duradouro desta arrogância racionalista fatal foi
a abolição do pluralismo e, em particular, da
autonomia da moral. Transformada em instrumento da
acção política, a moral marxista transforma-se em
relativismo total. O cepticismo racionalista dá
lugar ao niilismo e, com ele, ao fanatismo. Este,
creio, era o ópio dos intelectuais denunciado por
Aron.