Expresso - 30 Jun 07

 

Raymond Aron no Estoril
JCEspada

Aron criticou a adesão dos intelectuais a uma fé secularista, com a qual procuravam substituir a fé cristã que tinham perdido


Entre domingo e terça-feira passada decorreu no Estoril o primeiro colóquio da Liberty Fund em Portugal. O tema escolhido foi ‘Liberdade e responsabilidade pessoal no pensamento de Raymond Aron’. Durante dois dias, em estrita clausura e absoluta pontualidade, dezasseis participantes e dois observadores - de Portugal, Europa e América - cruzaram argumentos e interrogações sobre cerca de 250 páginas de textos de Raymond Aron. O ponto de partida e de chegada, com vários outros temas pelo caminho, foi a crítica de Raymond Aron ao marxismo e ao que designou por “ópio dos intelectuais”. Uma parte dessa crítica é hoje muito conhecida. Os factos derrubaram de vez as pretensões científicas do marxismo e confirmaram o que Aron dissera há mais de cinquenta anos.

Mais intrigante foi o exacto significado atribuído por Aron à expressão ‘religião secular’ - com que designou o marxismo - e a sua defesa de uma postura céptica perante a acção política. Estava Aron a criticar as religiões em geral e a advogar um cepticismo filosófico global?

A minha interpretação não é essa. Aron - tal como Popper, Hayek e Oakeshott - estava a criticar a adesão dos intelectuais a uma fé secularista, com a qual procuravam substituir a fé cristã que tinham perdido. Mas, enquanto a fé cristã partia da imperfeição incontornável do homem e por isso excluía o alcance da perfeição na vida terrena, Marx e os marxismos propunham a salvação na terra.

Ao assentar na imperfeição do homem, a fé cristã abraça uma visão pluralista da vida social. A cidade do homem não pode igualar a cidade de Deus. Haverá sempre um hiato entre os nossos padrões morais e a nossa capacidade de os realizar. A moral será por isso dotada de uma autonomia que não é subsumível na esfera política, ou da ciência, ou mesmo da arte. Deste pluralismo emerge uma tensão e uma conversação sempre inacabada que constitui talvez o elemento mais distintivo e mais dinâmico da civilização ocidental: está aí a raiz da liberdade e responsabilidade pessoal.

Marx, pelo contrário, procurou criar uma ideologia monista e total em que moral, ciência e sentido da história são reconciliadas num projecto de salvação através da acção política. O resultado mais trágico e duradouro desta arrogância racionalista fatal foi a abolição do pluralismo e, em particular, da autonomia da moral. Transformada em instrumento da acção política, a moral marxista transforma-se em relativismo total. O cepticismo racionalista dá lugar ao niilismo e, com ele, ao fanatismo. Este, creio, era o ópio dos intelectuais denunciado por Aron.