Público - 21 Jun 08

 

Um Estado refém das dívidas que acumula
Paulo Ferreira

 

O aumento dos preços dos medicamentos mostra como os governos precisam de ter as contas em dia

 

O que leva um governo a violar o seu compromisso de não aumentar os preços dos medicamentos (que estão sujeitos a aprovação prévia de organismos do Estado) até 2009, numa altura em que os consumidores já não suportam ouvir falar de aumentos de preços?

 

Descartando a hipótese do masoquismo, característica que este Governo não possui, só uma razão muito forte pode ter levado ao aumento de 121 produtos farmacêuticos. E esse motivo incontornável foi confessado pelo próprio secretário de Estado da Saúde, Francisco Ramos: foram as próprias farmacêuticas que impuseram esses aumentos, ameaçando retirar os produtos do mercado, se o preço não subisse. E, perante isto, o Governo viu-se obrigado a negociar quais e quanto passariam a custar mais ao doente.

 

O que o secretário de Estado não disse, mas a próprias farmacêuticas se apressaram a recordar, é que a dívida do Estado ao sector é neste momento superior a 700 milhões de euros. Um montante elevado que resulta essencialmente de fornecimentos a hospitais públicos serem pagos muito para lá dos prazos contratados.

 

O número não aparece por acaso e ajuda-nos a perceber por que é que o Estado está permanentemente refém de algumas indústrias.

 

Neste caso, são as farmacêuticas que, vendo-se a obrigadas a financiar os cofres públicos de uma maneira abusiva, têm capital de queixa para obrigar os sucessivos governos a compensar noutros tabuleiros as dívidas que vão sendo acumuladas.

 

Mas também podíamos estar a falar das farmácias, que são crónicas financiadoras do Estado nas comparticipações dos medicamentos. Uma dívida que chegou a tal ponto que fez medrar uma Associação Nacional de Farmácias à custa do seu papel de mediador financeiro entre o Estado e as suas associadas. Nasceu aí o grupo empresarial que a ANF é hoje e o poder com que o seu presidente, João Cordeiro, tem neutralizado sucessivos governos quando chega a hora de legislar sobre o sector.

 

Outro sector que financia cronicamente o Estado é, obviamente, o das construtoras. Há mesmo rankings das câmaras municipais que mais devem ou que mais meses ou anos se atrasam nos pagamentos.

 

Quando se fala da questão das dívidas do Estado a fornecedores, um valor global que andará entre os dois mil e os três mil milhões de euros (próximo de 1,5 por cento do produto anual da economia portuguesa), coloca-se geralmente o problema na asfixia financeira que esses montantes representam para milhares de empresas. E esse problema é real, é grave e devia ser rapidamente corrigido.

 

Pagar a tempo e horas não é só uma questão da mais básica honestidade da parte de um Estado que persegue desproporcionalmente contribuintes por dívidas ridículas. É também uma forma de injectar dinheiro na economia, agilizando uma cadeia de pagamentos com prazos terceiro-mundistas que colocam mal o país em qualquer comparação internacional.

 

Mas pagar as dívidas a fornecedores é ainda outra coisa muito importante: dá espaço aos governos e aos autarcas para definirem políticas e tomarem decisões podendo olhar nos olhos os que fiquem desagradados com elas.

 

Como vimos esta semana com o exemplo dos medicamentos, isso não acontece quando um secretário de Estado se senta para negociar com o sector farmacêutico ao qual o Estado deve milhões. Ou quando um autarca tenta recusar trabalhos a mais numa empreitada feita por uma construtora que ainda não recebeu o pagamento das últimas obras que concluiu para o município.

 

Um Estado que deve desta forma escandalosa não é um Estado livre. Não é um Estado com capacidade nem moral para definir as suas políticas e as impor a agentes privados, se for caso disso. Só para recuperar a liberdade de decidir vale a pena ponderar formas extraordinárias de pagar as dívidas que o Estado deixou acumular para lá de todos os prazos admissíveis.