Público - 05 Mai
08
O casamento líquido
Alexandra Teté
A esfera mercantil impregna todas as dimensões
vitais, também os laços de solidariedade e a aliança
conjugal
1.O sociólogo Zygmunt Bauman notabilizou-se por ter
difundido e desenvolvido a ideia de "modernidade
líquida", destacando a volatilidade e precariedade
dos laços sociais no mundo de hoje. Teríamos saltado
de um tempo "sólido" - estável, rígido, duradouro -
para um universo líquido: informe, mutante e
transitório. As normas sociais, as instituições, as
relações entre as pessoas tornaram-se fluidas,
flexíveis e volúveis, bem como as suas convicções,
identidade, amores e ódios. Esta evolução não é
inteiramente negativa, mas generalizada
acriticamente às instituições fundamentais da
sociedade conduz à anomia e alienação, privando-a
daquele mínimo de valores e consistência que
comporta a vida civil bem ordenada.
Bauman estudou precisamente aquilo a que chama o
"amor líquido", a fragilidade dos vínculos humanos
na sociedade moderna. Vem isto a propósito da nova
lei do divórcio. Como o preâmbulo do projecto de lei
do Partido Socialista fez questão de esclarecer, o
legislador gosta do divórcio e tratou de o tornar
mais "liberal", ágil e fácil. Como já se disse, ao
legitimar a desvinculação unilateral e imotivada dos
compromissos conjugais, o novo regime ressuscita de
certo modo a figura do "repúdio", agora recíproco,
embora sempre favorável ao mais forte. De qualquer
modo, é evidente que a nova lei - quer ao nível das
intenções quer ao das consequências previsíveis -
vem debilitar e "liquefazer" o casamento.
2. Segundo Bauman, essa liquefacção do amor e do
casamento aparece como um efeito do expansionismo do
paradigma do mercado e da cultura consumista: a
esfera mercantil impregna todas as dimensões vitais,
também os laços de solidariedade e a aliança
conjugal. Tudo e todos podem ser "objectos" de
consumo, passíveis de aquisição, fruição e detrito.
Quando a lógica utilitarista se torna o padrão das
nossas acções, também as relações conjugais se
valorizam em termos de liquidez, e a fidelidade -
vista como monótona e enfadonha - cede aos efeitos
de novidade e moda, rendida à experiência de novos
produtos e outras emoções. Também aqui, se procura a
gratificação rápida e efémera, de usar e deitar
fora; ou a garantia de que em caso de insatisfação
se devolve o dinheiro; ou a possibilidade de troca.
Isto é de algum modo patente na nova lei, que tudo
confia à espuma dos "afectos" e ao cálculo de
indemnizações. Neste contexto, onde encontrar razões
para enfrentar os problemas que a vida conjugal
apresenta, inevitavelmente, de vez em quando?
Bauman considera que na base desta "fluidez" do
casamento está a expectativa de que a quantidade
compensaria a falta de qualidade: como todas as
relações são débeis, procura-se aumentar o número de
transacções. Contudo, essa banalização tem um efeito
perverso e arrasador. Quanto mais descartável se
torna a relação, menos valor se atribui à vida em
comum, e menos viável se torna o acesso dos esposos
àqueles bens que denotam a plenitude do casamento: a
autodoação fiel, recíproca e completa.
3. Mas não oferece o "casamento líquido" e a
"democracia das emoções" (de que fala Giddens) mais
liberdade? Como vimos acima, Bauman sugere que a
promessa de libertação individual pelo divórcio se
verificou ser falsa. Por outro lado, como já dizia
Marx, ninguém é obrigado a casar-se - no sentido de
contrair uma união duradoura e exclusiva -,
sobretudo quando estão disponíveis na lei fórmulas
de união de facto. Ao contrário, deve notar-se que a
opção do casamento indissolúvel não está disponível:
um homem e uma mulher que queiram casar "até que a
morte os separe", com o amparo da lei, não podem
fazê-lo. Por último, a literatura recente sobre a
matéria dá conta de como o divórcio unilateral
favorece (e até "obriga") uma intrusão do Estado na
vida íntima dos cidadãos: não havendo consentimento
de um dos cônjuges, o poder coercivo do Estado será
convocado para separar os activos do casal
(tipicamente, os filhos e a casa) e arbitrar o
litígio, com o escrutínio da privacidade
interpessoal.
4. Comentando a encíclica Deus caritas est, Bauman -
um judeu agnóstico, tanto quanto sei, insuspeito de
pretender impor o direito canónico à lei civil -
parece rejeitar a fatalidade quer de um "mau
casamento", quer do divórcio, e abona o apelo de
Bento XVI à possibilidade de um amor pleno, ao qual
estão chamados o homem e a mulher. Aquele amor, diz,
com que todos sonhamos e de que todos temos
necessidade para nos sentirmos salvos num mundo
caracterizado pela insegurança e que não pode ser
senão altruísta e incondicionado. Por ambas as
partes. E começando por mim. Associação Mulheres em
Acção