Público - 28 Mar
08
Divórcio: a lei deve sempre proteger os mais
fracos
José Manuel Fernandes
O casamento é um contrato voluntário. Que até tem
alternativas. Que dá direitos e implica deveres. Por
isso a lei, quando este termina, deve assegurar que
não é lei do mais forte que se impõe
Porque será que dos 50 estados que compõem os
Estados Unidos apenas um prevê que um divórcio não
amigável possa implicar a determinação da culpa? A
questão seria simples de responder não se desse o
caso de esse estado ser o de Nova Iorque, um dos que
possuem uma população e uma legislação mais
liberais. Distracção dos legisladores? Algo perdido
na memória dos tempos? Ou outro motivo mais
inteligível?
Sem conhecer os motivos concretos, explorámos duas
vias diferentes para encontrar uma resposta: a da
evolução do feminismo e as estatísticas do divórcio
nos EUA. Estas últimas indicam-nos que mais de dois
terços dos divórcios são pedidos pelas mulheres,
quota que sobe para 90 por cento quando se
consideram as mulheres com instrução superior. O
principal motivo detectado em vários estudos
académicos para esta diferença foi o facto de os
tribunais, por regra, protegerem as mulheres. A
probabilidade de ficarem com a custódia dos filhos é
muito mais elevada, tal como são mais elevadas as
pensões que os ex-maridos ficam obrigados a pagar.
Sendo assim, que interesse podem as mulheres ter em
divórcios facilitados?
Isso levou-nos à evolução de algumas correntes do
feminismo, onde se deixou de reivindicar a igualdade
absoluta para assumir que é maior a probabilidade de
ser o homem a faltar aos deveres do casamento do que
a mulher. Sendo assim, a lei deve seguir o princípio
civilizacional de proteger prioritariamente os mais
fracos, sendo que, numa relação a dois, a mulher é
mais vezes mais fraca (fisicamente, financeiramente)
do que o homem. Isso levou essas feministas a uma
maior prudência nas suas exigências, reconhecendo
que devem estar protegidas contra os homens que,
para utilizar uma expressão dura de Irving Kristol,
têm uma maior tendência para serem "predadores
sexuais".
Ou seja, há uma probabilidade de a lei nova-iorquina
ser "mais avançada" do que as leis do divórcio "sem
culpa" em vigor nas dezenas de estados onde o voto
evangélico é decisivo.
Vem isto a propósito do conjunto de alterações
legislativas ao regime do divórcio que o PS vai
propor. Por duas razões. Primeiro, porque
infelizmente aquele grupo parlamentar não se tem
distinguido por um especial discernimento, bastando
a proposta de que a utilização de piercing por quem
tenha menos de 18 anos implica a autorização dos
pais enquanto para realizar um aborto tal só é
exigido aos menores de 16 anos. Seja qual for a
opinião sobre tais leis, o que será mais
traumatizante esconder dos pais, um aborto ou uma
tatuagem? Os deputados do PS lá sabem.
O segundo motivo deriva das declarações de Alberto
Martins ao PÚBLICO e da ideia de que o casamento
deve assentar nos afectos (o que ninguém contesta) e
não nos deveres (o que é um absurdo). Na verdade,
afectos e deveres devem conviver num casamento.
Excluindo a noção de "dever" do contrato de
casamento - o qual, recorde-se, ninguém é obrigado a
celebrar, pois pode-se viver em união de facto -, só
ficariam direitos, faltando porém saber se do
marido, se da mulher. Dir-se-á: mas tendo alguém
deixado de amar o parceiro, deve ser obrigado a
continuar casado? Não. Só que, se não chegou a
acordo sobre a separação, a lei deve evitar que fuja
aos deveres que assumiu - como dar assistência à
família - violando direitos do parceiro.
É assim que chegamos a um paradoxo para o qual não
se encontra no que se conhece da proposta de lei uma
resposta: como é que pode divorciar-se alguém que
deixou de amar o seu parceiro, mas este não lhe
bate, não viola os seus direitos humanos e, por ter
dificuldades económicas, não consegue sair de casa
e, assim, criar uma situação de separação de facto?
A proposta do PS parece não prever uma saída para
este beco...
Convém, por fim, recordar que mais este gesto
destinado a piscar um olho à esquerda tem um pequeno
universo de aplicação. Em Portugal são muito poucos
os divórcios litigiosos: eram 6,4 por cento em 2006
e estavam a diminuir em percentagem, aproximando-se
da média americana de cinco por cento. Ou seja,
apenas uma em cada vinte separações. É desse
universo relativamente pequeno que estamos a falar
quando falamos do projecto do PS. A maior parte das
vezes o litígio não deriva de um parceiro querer
separar-se e o outro não: deriva dos valores
patrimoniais em causa e de como regular a tutela dos
filhos. Essas divergências não desaparecerão com as
razões "objectivas" que o PS diz querer incluir na
lei ou com as "subjectivas" que inspirariam o
projecto do Bloco, ontem chumbado. E mesmo que
passemos a chamar ao litígio um nome diferente - um
contencioso, por exemplo -, não deverá sempre o
legislador tratar de proteger o elo mais fraco num
contrato que, mesmo sendo diferente dos contratos de
arrendamento - Santana Lopes dixit -, não deixa de
ser um contrato celebrado voluntariamente?
Que as próximas semanas permitam aos nossos
deputados meditar serenamente no que vão propor, em
especial nas consequências que podem ter, na nossa
sociedade e não numa sociedade abstracta, as
alterações legislativas que querem levar por diante.