Expresso - 30 de Novembro de 2002
«Qual é o mal?»
Fernando Madrinha
OS dois homens que vemos em primeiro plano pertencem ao mesmo partido, o PSD,
onde desempenham ou desempenharam funções de altíssimo relevo.
António Pinto Leite é hoje vice-presidente e Aníbal Cavaco Silva foi, segundo as
palavras de António, além de um líder forte, o melhor chefe de Governo no
primeiro quartel da democracia portuguesa. Partilham, pois, muitas ideias e
ideais, mas quem esteve num auditório da Culturgest onde eles se encontraram na
terça-feira ficou a saber, se não sabia já, que há uma cumplicidade maior do que
o partido e uma comunhão de interesses e preocupações que vai muito além da
política, enquanto mecanismo de poder. O pretexto era o lançamento de um livro
com uma estranha pergunta no título - Qual é o mal? -, colectânea de 50 crónicas
escolhidas por Pinto Leite entre as três centenas que publicou no EXPRESSO ao
longo dos últimos 12 anos. Cavaco Silva prefaciou e chegou mesmo a sugerir outro
título ao autor - A culpa é do mar, tema de uma reflexão sobre o modo de ser
português que ele próprio, Cavaco, veio a citar e desenvolver num artigo também
publicado neste jornal. Pinto Leite ficou na sua e manteve o título da crónica
nº23, que começa assim: «A juventude dos anos 60 e 70 fazia uma pergunta ao
sistema de valores que então imperava: 'Porque não?' A juventude de hoje faz uma
outra pergunta: 'Qual é o mal?'». Entre uma pergunta e outra vai a distância
entre «os filhos de um moralismo autoritário» e «os filhos do poder de compra»,
segundo as felizes expressões do autor. E essa pergunta fatal «que nenhum pai
responsável deve achar normal que um filho normalmente lhe faça» revela, por si
mesma, a crise de valores e de referências com que pais e filhos se confrontam
hoje e com idêntica perplexidade.
Esbateu-se de tal modo a fronteira, que, perante as novas evidências que põem o
ter e o parecer acima de tudo mais, a uns já se torna difícil de explicar e aos
outros de compreender onde está o bem e o mal. Se os pontos cardeais vão
perdendo a sua definição na voragem do consumismo, na aparência da facilidade e
na felicidade ilusória que o poder de compra e a força do dinheiro determinam,
não admira que sejam cada vez mais os pobres filhos de paizinhos ricos. E que se
torne cada vez mais triste e dolorosa, por factores e influências que eles já
não podem controlar sozinhos, a sina de muitos pobres pais de meninos ricos.
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