Temos diante dos olhos um paradoxo
surpreendente. Estamos em crise e isso naturalmente gera protestos e
lamentos. Mas quem reclama não são os pobres, os necessitados, os
vencidos da tradicional luta de classes. São antes os transportes,
estudantes, hospitais e os mais variados grupos de interesse. Porquê? É
que hoje o conflito clássico desapareceu. A verdadeira luta é um combate
entre os que se julgam com direito ao dinheiro dos outros e os outros. A
velha luta de classes não tinha, de facto, justificação. No processo
produtivo, capitalistas e trabalhadores não são, na sua natureza,
adversários na divisão de um bolo comum, mas parceiros no processo de o
aumentar. Existem ocasiões de confronto distributivo, mas são
secundárias e acidentais. Por isso essa contenda nunca teve a
importância que alguns lhe queriam conceder. Mas existe um campo onde os
participantes partilham um recurso escasso, num aflitivo «jogo das
cadeiras»: o debate orçamental. À medida que o peso das finanças
públicas cresceu nos países desenvolvidos, esta nova luta de classes
tornou-se um embate formidável.
Os exemplos recentes são muitos e variados. Um dos mais evidentes está
nas greves dos transportes públicos de passageiros. Nacionalizado ou
fortemente regulamentado, o sector sempre viveu, de uma maneira ou de
outra, à sombra do Orçamento. Por isso, os seus trabalhadores adquiriram
hábitos de funcionários. Mas com uma força muito especial, o poder de
prejudicar os pobres. Uma greve de transportes afecta fortemente quem
não tem veículo próprio e só anda de camioneta ou autocarro. Por isso,
essas paralisações, mesmo que disfarçadas de «justas lutas de
trabalhadores», são afinal uma forma de uma classe privilegiada oprimir
o povo desfavorecido. Há muitos outros casos, como nas propinas,
autarquias, portagens, agricultura, artistas. Em todos se ouvem os
malabarismos intelectuais mais criativos para se fazerem passar por
proletários em luta por direitos fundamentais. A verdade, simplesmente,
é que esses sectores se acham com direito ao dinheiro dos outros.
Mas talvez o fenómeno mais significativo, embora quase despercebido,
seja o recente protesto dos administradores hospitalares. Ao longo das
últimas décadas nunca ouvíramos falar desta associação, que agora vem a
público denunciar preocupações. O fenómeno que os inquieta é acidental,
mas o elemento decisivo é que os administradores hospitalares estão
preocupados. E isso tem de ser... excelente! Porque eles são os
responsáveis pelo maior desperdício financeiro da História de Portugal
(e olhe que isto é dizer mesmo muito!). Assim, vê-los preocupados é
razão forte para os contribuintes se mostrarem satisfeitos.
Em Portugal hoje há protestos dos mais variados lados. Ver indignados
tantos sectores que sempre viveram à nossa custa tem de ser um bom
sinal. O Governo deve estar, finalmente, a fazer verdadeiras reformas e
a apertar nos sítios certos. Mas não haja ilusões: os contribuintes vão
perder o embate. Passada a crise voltará o despesismo. Enquanto o
ingénuo contribuinte não acordar e reagir, esta luta de classes, como a
outra, tem um fim anunciado. No entanto, no meio da derrota clamorosa,
os martirizados pagantes podem retirar algum conforto passageiro dos
protestos daqueles que tanto gastam à sua custa. É este o único consolo
dos vencidos na actual luta de classes.