Público
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21 Nov
08
Parar para pensar
Graça Franco
Descontentamento e bota-abaixismo já caracterizaram
tempo de mais a nossa história recente. O resultado
está à vista
Um difuso mal-estar. Assim se lhe referia a Sedes em
Fevereiro. Quando ele era ainda apenas, ou já, isso
mesmo: mal-estar e difuso. A permitir ao Governo
assobiar para o ar fingindo não o ver. Mas já o
general Garcia Leandro lhe adivinhava no "risco de
explosão social" os contornos perigosos das coisas
que se sabem "como começam, mas não se sabe como
acabam". Uma perigosa agitação social cujo alastrar,
em tempo de crise, pode constituir um verdadeiro
perigo para a democracia. Avisava, já esta semana,
Mário Soares num texto assinado no DN. Há vozes de
experiência feita que convém ouvir enquanto é tempo.
Tem razão o Governo em não gostar de aves de mau
agoiro e profetas da desgraça. Em tempos de crise o
agoireiro é já de si profeta. Ouve-se e acontece. A
recessão é inevitável? Talvez. Já aí está disfarçada
de estagnação? Provavelmente. Mas que se ganha em
oferecer-lhe manchetes? Até aqui, compreendo-o e
subscrevo. Mas nada disto legitima a política da
avestruz. Nada disto dispensa o reconhecimento
sereno do que efectivamente se passa. Com a
gravidade com que se passa. A crise é má conselheira
e nada mais inseguro, instável e imprevisível que um
país pobre à beira de um ataque de nervos. E o risco
de explosão social de que se falava em Fevereiro tem
agora o caldo de cultura ideal para se tornar ainda
mais perigoso. Lembram-se no que deu a louca teoria
do oásis?
Não vale a pena enfiar a cabeça na areia. O
desemprego não se reduziu no terceiro trimestre.
Aumentou para 423 mil. E não foi mero efeito
sazonal. É uma inversão de tendência bem patente na
redução do emprego (menos 0,6). É um insulto ao bom
senso imaginar que o subsídio, abrangendo apenas 60
por cento dos visados, é um desincentivo à busca de
emprego e causa de prolongamento do desemprego de
longa duração. O clima económico está já em terreno
negativo, ao mais baixo nível desde 2003, e o efeito
do brutal endividamento externo está à vista de
todos na redução do rendimento nacional bruto. Parte
da riqueza produzida esvai-se em pagamentos ao
exterior. Se dúvidas restassem sobre o que aí vem,
basta ver o que já se passa nos Estados Unidos. É
questão de tempo até cá chegar...
Com a história também se aprende a não repetir os
erros. E um deles pode ser o subestimar o nível de
"zanga", o grau de "indignação" associado aos
protestos. Os movimentos corporativos explicam
muito, há seguramente resistências às mudanças
necessárias e inevitáveis a explicar outra parte,
mas haverá também um grau de frustração das
expectativas a assumir contornos imprevisíveis.
Há toda uma geração apanhada na onda que varre a
classe média. Quadros qualificados e trabalhadores
dedicados cuja motivação soçobra perante um
gigantismo asfixiante de uma máquina
burocrático-estatal que varre tudo e todos como um
rolo compressor. Em múltiplas áreas o Estado soma ao
irritante "não faz" a ameaça permanente "de não
deixar fazer". E se muita gente até podia engolir a
frustração própria, começa a não suportar o
naufrágio das expectativas de vida e de sucesso dos
filhos.
Soares afirma que "é extremamente perigoso deixar
que se junte a estas dificuldades óbvias uma
agitação latente de tipo social. A democracia
pluralista e respeitadora dos direitos humanos, tal
como a temos vindo a construir, há quase 35 anos,
pode estar em causa". Bastava esta frase - vinda de
quem vem - para justificar que parássemos para
pensar.
Mas o ex-Presidente acrescenta, para que não restem
dúvidas sobre a gravidade da coisa: "Não é
impossível, num mundo tão inseguro e em que as
mudanças são vertiginosas. A Europa pode deixar de
ser um bastião da democracia, como tem sido." E da
constatação nasce o apelo veemente aos líderes
políticos e sindicais (envolvidos na espécie de
guerra civil em que se está a tornar o sector da
educação) "para que tenham em conta essa
possibilidade, que seria irreparável" e soma-lhe um
precioso conselho aos descontentes: "Não basta
criticar o que está, o que é, aliás, uma condição de
liberdade. É preciso saber quais são as alternativas
possíveis e em que consistem."
Eis a questão. O povo começa a cansar-se de
inevitabilidades. Do alto do seu quero, posso e
mando, o Governo tem subsistido cavalgando a onda da
ausência de alternativas. Mas se à direita tardam em
consolidar-se ou primam pela real ausência, à
esquerda elas começam a desenhar-se e algumas não
são mais do que tristes reedições de modelos
falhados, travestidos agora de roupagens de falsas
modernidades. Apesar do arcaísmo, são poderosas
máquinas potenciadoras do descontentamento. Não
convém subestimá-las. Também não adianta dar ordens
à polícia para que deixe de contar os descontentes.
Eles estão aí aos milhares, é impossível não os ver.
Curiosos socialistas estes, que vêem no simples
facto das verdades reveladas uma ameaça. Ou temerão
a própria razão dos números? São tiques destes que
exauram a democracia.
Descontentamento e bota-abaixismo já caracterizaram
tempo de mais a nossa história recente e o resultado
está bem à vista. Uma educação em colapso, a minar a
capacidade de aumentar a produtividade e
competitividade de uma economia ultra-endividada e
cada vez mais dependente dos favores da conjuntura
exterior; uma saúde em estado comatoso e uma
assistência social sufocada na pressão incessante de
um envelhecimento populacional galopante. Tudo num
país sem elites.
Basta pensar na simples incapacidade de recrutamento
de 2000 trabalhadores, com o mínimo do nono ano de
escolaridade, pelas empresas de energias renováveis
de Viana do Castelo, apesar do elevado desemprego a
norte, para avaliar como estamos amarrados de pés e
mãos às causas da nossa própria pobreza.
Mas a esta falta de qualificação somam-se fenómenos
de pobreza endémica, com 35 por cento da população
pobre a trabalhar sem conseguir sair dessa condição,
e 11 por cento da população total trabalhadora a
enfrentar um risco grave de pobreza.
Não por acaso aumenta a pressão sobre as contas
públicas com as transferências básicas para fazer
face a este crescente número de potenciais
excluídos. Mas não bastam. Sem os apoios do Estado,
que ano a ano têm (e bem!) sido canalizados para
estes grupos desfavorecidos, o cenário seria ainda
mais aterrador (os 18 por cento de população pobre
subiria drasticamente para quase um quarto da
população). Ainda assim continuam pobres 26 por
cento dos idosos, 41 por cento das famílias
monoparentais e 23 por cento das nossas crianças.
É hora de reconhecer que do D de desenvolvimento
(uma das promessas do 25 de Abril) era lícito
esperar, nos últimos 34 anos, um pouco mais.
Jornalista