Público - 29 Out 03

O Sistema
Por JOAQUIM FIDALGO

Eu até gostava que fosse de outra maneira, mas não: em cada dia que passa, reforça-se a minha convicção profunda de que o processo Casa Pia se vai esfumar em quase nada. Quer dizer, dará sempre alguma coisita, um ou outro julgamento, uma ou outra condenação. Mas pouco mais. Então a denúncia, e consequente responsabilização, de toda a (presumivelmente vasta) rede de exploração sexual de menores, que operou durante anos a fio neste país e molestou criminosamente muitas dezenas de crianças (a única certeza que hoje temos...), isso é que não vai certamente suceder. A actual provedora da Casa Pia, Catalina Pestana, bem o disse sem o dizer, ao sugerir que o conhecimento público de todos os implicados teria o efeito de um terramoto. Não, não haverá terramoto nenhum. Como poderia?... Haverá, quando muito, uns estremeçõezitos - e para diante, que é melhor esquecer...

Este é um processo impossível, se assim se pode falar. Mexe onde não deve mexer. Toca em quem não pode tocar. Subverte a "ordem natural" a que nos habituámos, mistura os papéis tradicionais dos "maus" e dos "bons", traz à luz o que é do quarto escuro. Por isso tem dado o que vemos: um caudal impressionante de informações e contra-informações, de manipulações, de fugas, de boatos, de guerras de poder, de recursos, de pareceres, de contrapareceres, de avanços, de recuos, cujo objectivo maior já está alcançado: semear a dúvida, lançar o descrédito, criar a confusão. E é pelo meio desta confusão que se vão escapulir, calmamente, os grandes culpados - porventura à custa de alguns inocentes. No meio de tanto granel, que bocadinho de verdade é ainda legítimo esperar?

Discute-se se o "sistema" funcionou ou não. Por mim, acho que funcionou às mil maravilhas. Este sistema em que vivemos, em que os ricos têm mais oportunidades que os pobres, os poderosos mais influência que os desvalidos, os respeitáveis mais crédito que os marginais, os cultos mais voz que os analfabetos, os fortes mais alternativas que os fracos... O "sistema" é isto tudo: o sistema judicial não é uma ilha, e o sistema político outra ilha, e o sistema mediático outra ilha... Eles têm a ver uns com os outros, influenciam-se mutuamente, ligam-se por vasos comunicantes, interagem. É ver as ondas de choque que este processo levou em simultâneo aos diversos "subsistemas". Não foi por acaso, dados os protagonistas (sabidos e presumidos), tanta gente conhecida, tanta gente influente, tanta gente com recursos variadíssimos, com porta aberta para jornais e televisões, e para juristas e especialistas, e para instituições variadas. Como é que, com este envolvimento todo, seria admissível o tal terramoto?... Não, não é possível. E não é culpa de A, B ou C em concreto; é o "sistema".

Este sistema global em que vivemos, e que tão bem conhecemos dos variadíssimos meandros do dia-a-dia, funcionou, sim: acendeu as luzes vermelhas e desencadeou, por todo o lado, mecanismos de autoprotecção. Para que em breve volte tudo "à normalidade" e o que fica para trás (castigados que tenham sido um ou dois malandros para nos aliviar a consciência colectiva) não seja mais do que um sonho mau. Porque a verdade seria, porventura, insuportável.

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