Diário de Notícias - 15 Out 06
A crise acabou
Eduardo Dâmaso
O ministro da Economia deu na sexta--feira a grande
notícia: "Eu acho que a crise acabou totalmente",
disse Manuel Pinho. Depois arrependeu-se e corrigiu
o tiro, mas produziu uma declaração ainda mais
surpreendente do que a primeira: "Não se decreta o
fim de uma crise. É um bocadinho infantil (...), o
que eu quero dizer é que não é bom falar de crise."
Estonteante? Não, só um bocado confuso. O ministro
acha-se infantil? O ministro acha que a crise acabou
completamente, só um bocadinho ou que ela não acabou
de todo mas não é bom andar sempre com a crise na
boca?
Num país melancólico, é sempre bom haver ministros
bem-dispostos, que sabem que atacam a maldita crise
existencial dos portugueses com uns ditos que puxam
à gargalhada. Afinal, terá sido esse o caso. O
ministro queria pôr os portugueses a rir um bocado.
Até porque, que diabo, a crise é relativa.
Tecnicamente, não estamos em reces-são porque a
economia cresce há vários trimestres consecutivos.
Tecnicamente, a administração pública está a ser
"desengordurada", para usar a palavra do
ex-dirigente socialista Jorge Coelho. Tecnicamente,
a mesma receita está a ser aplicada na saúde, na
educação. Tecnicamente, só temos razões para estar
felizes. Portanto, abaixo a crise! "Desengordure-se"
a crise!
O problema é que a crise existe cada vez menos
"tecnicamente", mas ela persiste em manter-se na
vida real de muitos portugueses. Desde logo, na vida
daqueles que vão pagar mais pelas novas taxas
moderadoras e que, ainda por cima, levam uma
reprimenda de uma antiga ministra da Saúde
socialista como se fossem uns malandros que queriam
tudo de borla a vida inteira. Ou na vida dos idosos
que não têm dinheiro para pagar medicamentos. Ou das
famílias que gastam todos os anos uma fortuna em
livros e materiais escolares, alojamento e
transporte de filhos que estudam fora da área de
residência. Ou dos jovens licenciados que não
encontram emprego. Ou dos operários que vêem as
fábricas fechar.
A crise também só existe na solidão dos velhos que
vivem em prédios degradados de onde não conseguem
sair anos a fio. Ou na vida das largas centenas de
milhares de pessoas que vivem em Portugal abaixo do
limiar da pobreza e, em particular, nas áreas
metropolitanas de Lisboa e Porto. O radioso
optimismo de Manuel Pinho ainda há-de chegar um dia
a estes portugueses, mas, por agora, não dá para
gloriosos amanhãs que cantam. Júbilo tamanho só
mesmo no espírito do ministro.