Público - 20 Out 06
Os amanhãs que zurram
Vítor Dias
Voltaram à cena mediática alguns dos que se
investiram na quase funerária missão de passar
certidões de óbito a "um mundo que acabou" e que,
depois de décadas a darem piadas aos "amanhãs que
cantam", passaram a ser zelosos pregadores dos
"amanhãs que choram", ou,
dado o nível de pensamento de alguns, dos "amanhãs
que zurram"
Por muito que alguns se tenham desdobrado em
comentários hostis, desabafos insolentes e
conclusões absurdas, a verdade é que a manifestação
promovida pela CGTP-IN no passado dia 12 de Outubro
constituiu uma impressionante, forte e comovente
expressão de disposição combativa do mundo do
trabalho e de um vasto descontentamento popular
contra a política do Governo do PS, que acabará por
pesar no curso dos acontecimentos.
É certo que, precisamente por a manifestação ter
sido isso mesmo, não faltaram uns patuscos a
fixarem-se muito nas "camionetas" que teriam
transportado os manifestantes de vários pontos do
país, como se estes tivessem obrigação de vir a pé
para uma manifestação sindical em Lisboa, e sem ao
menos repararem que ela se realizou num dia normal
de trabalho, implicando portanto ou greves ou
pedidos de dispensa que significaram para
muitíssimos trabalhadores perderem um dia de
salário.
E também, a pretexto da manifestação, lá voltaram à
boca da cena mediática alguns dos que, desde há
algum tempo, se investiram gostosamente na quase
funerária missão de passar certidões de óbito a "um
mundo que acabou" e que, depois de décadas (e ainda
hoje o fazem) a darem piadas aos "amanhãs que
cantam" (expressão que os comunistas não usam há
mais de 40 anos), passaram a ser zelosos pregadores
dos "amanhãs que choram", ou, melhor dizendo, dado o
nível de pensamento de alguns, dos "amanhãs que
zurram".
Mas, tirando estes exemplos mais rasteiros, a
principal tentativa de desvalorização da
manifestação de 12 de Outubro foi feita através da
insistente invocação dos resultados das sondagens
que dariam José Sócrates e o PS com uma apreciável
cotação de apoio e popularidade (as últimas eleições
autárquicas e presidenciais nunca existiram!).
Por mim, sei bem de mais que, em Portugal, a
"cultura" enraizadamente dominante a este respeito
conduz a que colocar interrogações ou alinhar
objecções às sondagens publicadas ou alguns dos
métodos usados é o mesmo que uma pessoa colocar-se à
frente de um comboio em andamento, e tanto faz que
seja de mercadorias, suburbano, regional ou o Alfa,
porque o resultado é sempre igual: ou seja, é
trucidado sem dó nem piedade.
Decididamente, não estamos na França, onde, a
propósito das presidenciais, a revista Marianne, sem
especial escândalo ou reacções corporativas, se
permite encher a parte central da sua capa de 30/9
gritando "Sondagens traficadas, intoxicação,
propaganda, pressões, censuras, controlo dos media -
PERIGO! - Como manipulam a informação".
Bem ao contrário, desde há muito que, entre nós, as
sondagens, os seus resultados e as suas formas de
tratamento jornalístico constituem, em regra, o
território por excelência da falta de espírito
crítico que irmana desde o intelectual e professor
universitário que escreve crónicas na imprensa
durante cinco dias da semana até ao leitor mais
comum.
Nem mesmo o facto de, num certo período, se
efectuarem diversas sondagens e estas apresentarem
resultados muito díspares entre si causa dúvidas ou
especiais interrogações, sendo cada uma vista e
comentada como boa, credível e fiável, quando é uma
evidência que nem todas podem estar a reflectir bem
as opiniões dos cidadãos naquele momento.
Assim, a respeito da famosa "cotação" de Sócrates,
se virmos a sondagem DN/Marktest de 29/9, o seu
saldo entre opiniões negativas e positivas dos
inquiridos sobre a sua actuação é de 18 pontos
positivos (o que nem parece nada de excepcional dada
a política de direita que realiza, dado que é
secretário-geral de um partido que teve 45 por cento
dos votos e dado que, por exemplo, Jerónimo de
Sousa, secretário-geral do PCP, apresentava um
apreciável saldo positivo de 11 pontos). Mas se
formos ver a do Expresso/Eurosondagem de 7/10, aí o
saldo positivo de José Sócrates já aparece como
sendo de 37 pontos, enquanto o de Jerónimo de Sousa
surge como sendo de 1 ponto.
Entre outras, há mais uma importante divergência que
é de assinalar até pelas suas repercussões sobre as
previsões. Estamos a referirmo-nos concretamente à
percentagem dos que, abordados pelos inquiridores,
escolhem o item "não sabe/não responde". Ora, na
sondagem DN/Marktest, os que declaram que "não
sabem/não respondem" ascendem a 37 por cento, no
entanto, na do Expresso/Eurosondagem, esse número já
baixa para cerca de 12 por cento.
Já quanto às sondagens sobre resultados eleitorais
dos partidos, as coisas ainda são, por vezes, mais
complicadas e geradoras de maior controvérsia. Basta
anotar que quem tenha lido o DN de 29/9 o que terá
retido eram as previsões de que o PS teria 46 por
cento, o PSD 30, a coligação PCP-Os Verdes 10, o BE
8 e o CDS/PP 2 por cento.
Mas poucos leitores, jornalistas ou comentadores
terão reparado que os "resultados brutos" (que,
apesar do nome feio, são os que verdadeiramente
reflectem o que os inquiridos realmente responderam)
davam 22,7 por cento ao PS e 20,5 por cento ao PSD e
consequentemente, quanto aos outros partidos, à
volta de metade do que lhes era atribuído nas
previsões, a que se juntavam 6,6 por cento de "voto
em branco ou noutros", 4 por cento de "não voto" e
os tais 37 por cento de "não sabem/não respondem".
A abissal diferença entre "resultados brutos" e
"previsões" deriva normalmente do método de tratar
os que "não votam" ou "não sabem/não respondem" como
se viessem a abster (o que não é certo) e de os
repartir pelos partidos na proporção dos votos
expressos que obtiveram na sondagem. Conheço e
respeito o argumento de diversos especialistas de
que é preferível aproximar os resultados das
sondagens dos números que as pessoas estão
habituadas a ver na noite das eleições. Mas continuo
a pensar que este sistema acaba por pôr a falar e a
escolher quem, de facto, não falou nem escolheu e
que a sua generalização tem sobretudo que ver com
razões comerciais dos órgãos de comunicação social,
que sabem que destacar os "resultados brutos" não
causaria qualquer impacte.
De qualquer forma, no caso da sondagem DN/Marktest,
e só para mostrar a precariedade e complexidade
destas coisas, não posso deixar de observar que,
mesmo com a repartição proporcional dos chamados
"indecisos", uma diferença de 2,2 pontos entre PS e
PSD nos "brutos" não pode dar origem a uma vantagem
de 16 pontos do PS sobre o PSD nas previsões (antes
lhe daria uma vantagem de 4 ou 5 pontos). Mas se,
como diz a Marktest, nas suas contas também entraram
os resultados das últimas legislativas (as da
"banhada" do PSD") "ponderados pela matriz de
declaração de voto nesse acto eleitoral", então é
caso para dizer que o vencedor do passado - o PS -
vai estar sempre em vantagem nas previsões, mesmo
que, eventualmente, viesse a ser o perdedor das
próximas legislativas.
Cuidado, pois, com a "teologia" das sondagens, que
parece querer passar ao lado da nossa vida e
anestesiar a nossa luta. Consultor