Público - 18 Set 03

A Vontade de Saber
Por PEDRO STRECHT

Com o regresso às aulas de muitas crianças e adolescentes, é inevitável falar das expectativas que se geram sobre o novo ano lectivo e o comum desejo de sucesso nas aprendizagens.

Recomeçou esta semana o dia-a-dia das aulas, do contacto com os colegas, dos testes. Ainda agora cheira a livros e a materiais por estrear, prontos a usar. Para muitos dos mais novos é tempo de iniciar uma etapa da vida completamente nova que, se for bem conseguida, será um dos principais alicerces do bem-estar individual e social, actual e futuro. Para outros, é o regresso a um meio já conhecido, pese embora o facto de as mudanças de mais um ano criarem sempre a necessidade de adaptações, tanto mais evidentes quanto falamos de anos de transição críticos, como a passagem do primeiro para o segundo ciclo, ou a entrada no secundário.

Do ponto de vista psíquico, a escola traduz a possibilidade de ter um espaço de crescimento intelectual e cognitivo, mas também de crescimento emocional. Sabemos que um não faz sentido sem o outro, e que ambos se condicionam mutuamente. Aprende melhor quem está bem afectivamente, na relação consigo e com os outros, e terão mais dificuldades aqueles que se encontram em paragens, desvios ou regressões do seu bem-estar psíquico, quer elas sejam transitórias ou de carácter mais estrutural.

Claro que esse bem-estar emocional é sobretudo construído pelas características de estimulação e adequação afectiva que fazem parte da realidade sócio-familiar da criança. É na qualidade e na constância das relações com quem a cerca que cada criança e adolescente busca as referências e a fonte para a sua modelação interior, e é dela que também depende o melhor ou pior desenvolvimento de qualidades inatas.

Mas hoje, num mundo cada vez mais inseguro e competitivo, é difícil para muitos dos mais novos encontrar um clima, um meio como a escola, onde exista e se desenvolva um sentimento de segurança, sem medo de errar e sofrer uma retaliação. Talvez seja por isso que a escola funciona para tantos como um espaço de expressão de dificuldades, umas já trazidas de casa, outras apreendidas nesse meio, que funcionam como causa e consequência de uma auto-imagem negativa e de desvalorização narcísica: "Sou mau, não consigo, não sei, sinto-me diferente, pior que os outros", que rapidamente levam a uma atitude de paralisia e desinvestimento, "não quero, não faço, não gosto", cuja evolução será para uma atitude de rejeição e ataque activo, como "não vou, odeio ou odeio-me".

Recentemente lemos que os adolescentes portugueses aumentaram os consumos de tabaco, álcool e drogas e que muitos lhes atribuem um valor de equivalentes ansiolíticos ou antidepressivos. Para muitos, a vivência desses difíceis sentimentos nem sequer começou agora, já vem de trás, algures com raízes na própria infância. Em muitos desses casos parece evidente o papel que desempenha a escola, ou melhor a parte da escola que se relaciona com a prestação nas aprendizagens, e o que isso implica na relação de expectativas entre pais e filhos. É a adequação dessas expectativas que molda o equilíbrio interior, que organiza a imagem que a criança ou o adolescente tem de si, através daquilo que quem está mais próximo lhe devolve. O medo de falhar é antes de mais dirigido ao outro, ao pai, à mãe, aos amigos, do que ao próprio. O desejo de sucesso é também construído como fonte de gratificação pessoal, mas também para quem se investe como objecto de amor.

Nas situações de grande fracasso escolar, existe sempre implícita como causa ou consequência um sofrimento ansioso e/ou depressivo que, para além do mais, ainda o perpetua. Para muitos rapazes e raparigas, a fuga possível para esse sofrimento é feita pelo agir do consumo de substâncias tóxicas, cujo significado último é claramente sentido como um equivalente autodestrutivo. Da auto-imagem negativa passamos ao desinvestimento na aprendizagem e na relação e, por último, ao ataque ao próprio, num círculo vicioso de características negativas, cujo ponto final nunca será feliz. Aí, consumir muito álcool, abusar de drogas é não mais do que procurar um alívio para o mal-estar interior, uma anestesia para a dor psicológica, um muro contra as ameaças do exterior, uma forma de aniquilação de uma fonte de sofrimento. Só que o alívio é falso. E, sem a resolução verdadeira dos problemas, nada terá fim.

Daí que, em mais um ano de regresso à escola, faça sentido recordar a necessidade de se desenvolver a capacidade de compreender e dar um significado a tudo aquilo que as crianças e os adolescentes expressam de melhor e pior em meio escolar, numa atitude globalmente construtiva, de amparo e resolução do negativo, de estímulo e exaltação do positivo. Só isso fomenta a segurança, só isso diminui a retaliação.

E é da combinação destas duas condicionantes que se faz o bem-estar individual, sem ansiedades paralisantes ou sentimentos depressivos desvalorizantes, e é dele que nasce uma melhor harmonia de grupo, onde o que é de cada um não se perde e o que é de todos floresce. É assim que se cresce, se deseja perguntar, se aprende a ouvir, a pensar, a construir. É assim que a escola servirá para alguma coisa mais do que uma mera máquina de desbobinar conteúdos de parca utilidade prática, de exclusão de frágeis ou desfavorecidos, de exacerbação de dificuldades que levaram ao fracasso e à desistência de muitos.

"A vontade é mais forte do que o poder", dizem.

Assim haja vontade em mais um ano lectivo, vontade de dar aos mais novos o poder de se compreenderem, de se gostarem, de terem vontade de aprender. É desse poder que nasce a vontade primeira e última da vida: ser.

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