João César das Neves - 13 Set 04

 

Manipulação de Massas

   

Ficamos sempre espantados com os fenómenos de manipulação de massas. Como é possível que em tantas ocasiões tantas pessoas sensatas acreditem piamente em disparates óbvios? Das patranhas nazis às fábulas do «mar tenebroso» e a tantos outros casos, culturas inteiras caíram em erros fantásticos. Mas se considerarmos o que se passa hoje, se olharmos para as manipulações da nossa cultura, percebemos um pouco melhor como uma tolice muito repetida pode parecer razoável.

 

Um caso evidente é o do aborto. Ao longo de séculos, todas as civilizações sempre souberam, com absoluta certeza, que o aborto é um crime hediondo. Nunca foi preciso explicar porquê. Hoje a cultura ocidental, pela primeira vez na História, gerou uma vasta, elaborada e falaciosa retórica para demonstrar exactamente o oposto. E, apesar do progresso e da ciência, muito boa gente cai de novo na armadilha.

 

A forma como funcionam estes processos de sugestão de massas é muito curiosa: sempre com dois elementos, uma base verdadeira e uma distorção subtil. As manipulações partem sempre de um elemento autêntico e perturbador. Por exemplo, a humilhação da Alemanha invocada pelos nazis era dolorosamente real. Também a fúria das tempestades oceânicas motivava as lendas dos navegantes. Tudo nasce de um facto indiscutível. No aborto ninguém nega o drama horrível das pessoas envolvidas. Estes casos vêm sempre mergulhados numa enorme dor.

 

A manipulação introduz depois um ardil engenhoso. Os nazis partiam da miséria para impor a vingança e a necessidade da sua ditadura; os marinheiros viam monstros nas ondas. Também no aborto há um artifício elementar. A ideia básica é a identificação da gravidez com uma doença cancerosa. A questão passa então a ser apenas de saúde pública: a forma mais higiénica e segura de retirar o embrião. Como resultado multiplicam-se os longos discursos, os elaborados raciocínios, os vigorosos debates sobre a questão, sem nunca referir o elemento mais evidente: está ali um bebé.

 

Toda a gente sabe que está ali um bebé, mesmo que finja ignorá-lo. Aliás, a razão porque se quer fazer o aborto é precisamente por causa da criança. Se não fosse uma criança, não seria precisa a difícil operação, pois a gravidez em si não traz risco de maior. O motivo da brutal intervenção sobre o corpo da mãe é, não que aquilo seja um tumor prejudicial à sua saúde, mas que, se não se fizer nada, daqui a umas semanas sai dali alguém que sorri, chora e mama.

 

Matar um bebé inocente ainda é na nossa cultura um crime infame. Por isso é precisa a manipulação para não se falar nisso, para omitir o facto. Deste modo o aborto, mascarado como direito fundamental para a Esquerda e liberdade individual para a Direita, é hoje defendido por ambos os lados. Inimigos figadais noutros temas, os extremos estão unidos paradoxalmente, para apresentar como valor fundamental essa abominação suprema.

 

 tolice chegou ao ponto de se ouvir acusar como «extremista» e «fanático» quem apenas aponta o óbvio: o aborto impede um bebé de nascer. O mais significativo é que também trataram assim aqueles que no passado se opuseram à escravatura, à pena de morte e à discriminação da mulher. E o problema aqui é exactamente igual: recusar a alguém, ao embrião como ao escravo, o estatuto de pessoa humana. As gerações futuras terão tanta dificuldade em nos entender como nós em aceitar esses horrores antigos.

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