Público - 25 Set 04

Notas Soltas Sobre o Escabroso e o Grotesco do Governo e da Educação
Por SANTANA CASTILHO

Resignação.

Expressões como "normal funcionamento das aulas" ou "normal abertura do ano lectivo" têm sido usadas até a exaustão nos últimos dias. São, em meu entender, paradigma do adormecimento e da resignação em que os portugueses estão mergulhados. Porque, daqui a algum tempo, quando as aulas "funcionarem normalmente", os poucos que não desistem de clamar contra a anormalidade maior que é este sistema de ensino, continuarão como uma espécie de excêntricos ou marginais relativamente ao "status". Que fazem professores de casa às costas, desumanamente tratados e miseravelmente enganados? Aguentam! Que fazem os alunos das escolas que funcionam mal? Aguentam? Que fazem os pais que pagam o que lhes sonegam? Aguentam. Aguentam todos!

A questão de fundo é que o ensino, apesar da retórica e das profissões de fé dos caçadores de votos é, há trinta anos, uma questão política menor e um feudo de meia dúzia de escolásticos das ciências da educação. Precisa, por isso, de dois tipos de intervenção. Numa vertente imediata, urge varrer processos idiotas, modelos ineficazes e preconceitos dominantes. Numa perspectiva mediata, importa encarar a organização do sistema de ensino como uma questão politica, que pressupõe novos mecanismos de auscultação dos portugueses. Não falo dos "consensos" parlamentares. Falo de decisões que devem ser tomadas com a consideração da sensibilidade dos cidadãos.

O determinismo dos concursos.

O país tem andado apaixonado com a árvore sem se deter na floresta. O concurso nacional de professores é uma das idiotices que dominam o sistema. Se David Justino o tivesse extinguido, como lhe sugeri, em vez de o tornar ainda mais complexo, tinha-nos evitado a Tia Carminho e o ano lectivo tinha começado com "normalidade". Ao que chegamos! Foi preciso uma televisão fazer uma reportagem com um reitor na Bélgica para se dar ênfase ao óbvio: não há nenhuma razão para destabilizarmos anualmente as escolas com movimentações de cem mil docentes.

A responsabilidade dos outros.

Para além do anterior, que é o mais importante, tratemos as pequenas coisas pelos nomes e não esperemos pelo resultado da auditoria anunciada para Novembro para dizer o que se passou e o que se devia ter passado. O ordenamento jurídico deste concurso mereceu a concordância de todas as estruturas sindicais, com excepção da FENPROF. Mas é importante esclarecer que também ela concordava com o diploma. E só o não "subscreveu" porque "jogou" no processo a integração nos quadros de determinados professores contratados.

Concursos destes sempre foram convenientes aos sindicatos. Sabemos porquê.

O planeamento e a execução de toda a operação era uma tarefa técnica da responsabilidade da Direcção-Geral dos Recursos Humanos da Educação. Foi este serviço que, contrariamente ao que se tem insinuado, concebeu, dirigiu e decidiu o concurso público que, entre 14 concorrentes, escolheria a Compta para desenvolver a rotina informática. Nem David Justino nem Abílio Morgado tiveram intervenção no concurso público. Era e foi da competência própria da Directora-Geral.

Joana Orvalho, a directora-geral em análise, primeiro, e Fernando Correia, o responsável pela informática, depois, por parte do Ministério da Educação, e a Compta foram tecnicamente incompetentes para fazer aquilo que deviam ter feito. Falharam rotundamente. Há pelo caminho informações prestadas quer a David Justino quer a Abílio Morgado que se revelaram objectivamente falsas. Algumas, grosseiramente falsas. Dolo? Espero que não. Displicência e falta de profissionalismo? Certamente. A auditoria esclarecerá melhor a partição de responsabilidades e de incompetências, mas o que se conhece justifica a afirmação.

Abílio Morgado tem repetidas vezes assumido a "responsabilidade politica" do desastre. Mas a responsabilidade politica, sabemos, é do ministro, nunca do secretário de Estado, embora tenha sido ele que acompanhou e, a partir de determinado momento, tenha mesmo tomado em mãos todo o processo. David Justino confiou em Abílio Morgado. Abílio Morgado confiou nos técnicos. Quando o céu caiu na cabeça de ambos instalou-se a desconfiança entre todos. Em vez de se afastar quem falhou, permitiu-se depois que tudo continuasse como dantes, quartel general em Abrantes. Há porém um personagem de que se não fala. A sua graça europeia é José Barroso. Aquando do "apagão" de Setembro de 2003 (recordam a cena das mensagens telefónicas e do primeiro emudecimento da Internet?), Abílio Morgado pediu a demissão a David Justino. David Justino disse-lhe que a pedisse a quem o tinha escolhido, Durão Barroso, coisa que ele viria a fazer apenas em Janeiro seguinte. Entretanto, David Justino, que quis desde a primeira fífia afastar Joana Orvalho e Fernando Correia , foi cedendo a Abílio Morgado, que achava que deviam ser mantidos por deterem um conhecimento difícil de superar. David Justino várias vezes tentou, junto do primeiro-ministro, refazer uma equipa que não lhe agradava, não funcionava como ele queria (na qual se incluía Mariana Cascais, a patusca, imposta pelo CDS-PP) e não tinha escolhido. Durão Barroso respondia-lhe que esperasse por oportunidade melhor. Mal sabia David Justino que a oportunidade melhor seria a saída para Bruxelas pela porta do fundo, enquanto a fidelidade ao primeiro-ministro, que escolheu, o queimava, num processo que, em rigor, lhe passava ao lado. De cedência em cedência, em nome de valores tontos, todos foram andando até à derrota final. David Justino devia ter-se demitido. Estaria hoje bem melhor.

A responsabilidade destes.

Aquilo a que temos assistido nos últimos tempos é a cereja em cima do bolo. Santana Lopes, confirmando o que digo sobre a menoridade politica a que se vota a Educação, foi desencantar para ministra uma pessoa que é tecnicamente ignorante e politicamente desastrada. Como aqui escrevi há dias, já se condenou definitivamente e o que fez não resiste a qualquer tentativa de branqueamento. Obviamente que não é responsável pelas decisões que os que a antecederam tomaram. Mas é toda responsável pelas próprias que, sublinhe-se, teve tempo e informação suficiente para assumir de forma ponderada. Como posso admitir o diz que sim e o diz que não em que caiu? Que credibilidade quer ter quando desdiz hoje o que sentenciou ontem? No "Prós e Contras" afirmou, para quem a quis ouvir, que teria que concluir que tinha errado na avaliação feita se as listas não saíssem... quando não saíram. E disse que tiraria daí as devidas ilações. Quando terça-feira, foi levada pela mão de Morais Sarmento e do Ministro para os Assuntos Parlamentares à televisão, só um procedimento lhe devolveria dignidade.

As próprias expressões faciais que patenteou, elementos integrantes de uma comunicação não verbal vedada a um ministro, somaram-se à desastrosa prestação, da mesma natureza, que já tinha tido no "Prós e Contras". Compreendo bem o embaraço de Morais Sarmento quando a "arrastou" para fora da sala e nos poupou às carinhas e aos trejeitos inapropriados que fazia, como se em vez de uma comunicação ao país estivesse num plenário do "Big Brother". O que digo não é simpático, mas é preciso que se diga. É a dignidade de milhares de professores mal tratados que o impõe.

Uma consequência da "notoriedade" que alguns figurantes adquirem, por maus motivos, tem a vantagem de afastar a atenção pública doutros, igualmente responsáveis. Santana Lopes, ainda por cima de New York, não precisava de dar suporte ao insuportável.

Depois de tudo isto, dos 600.000 ? pagos à Compta e dos milhões de prejuízos que ninguém contabilizará, a colocação dos professores vai ser feita... à mão... por funcionários públicos calaceiros e primeiros responsáveis pelo desequilíbrio das finanças públicas.

É Portugal no seu melhor, a cobrir-se de ridículo.

Professor do ensino superior

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