Público -
19 Set 07
Embriões híbridos: uma barreira ética que cai
Pedro Vaz Patto
Juiz de Direito
Os mais elevados propósitos terapêuticos podem
esconder mesquinhas
ambições de prestígio ou lucro
Ao redor de questões bioéticas controversas jogam-se
princípios civilizacionais e antropológicos da
máxima relevância. Se é certo que algumas dessas controvérsias
são antigas, até há pouco tempo havia zonas de
consenso, e certas práticas encontravam uma
condenação unânime da parte dos mais diversos
quadrantes de opinião. Quando surgiram as primeiras
experiências de clonagem em animais, recordo-me
muito bem da afirmação unânime de
que a clonagem nunca poderia ser
admitida na espécie humana.
Mas, não muito tempo depois, começou a discutir-se a
clonagem humana com fins terapêuticos e hoje já se
discute a clonagem humana também com outros fins
(meritórios, certamente...). A fecundação
interespécies também fazia parte, até há pouco
tempo, de tais zonas de rejeição unânime, pela
natural repugnância que suscita a criação de seres
("híbridos" ou "quimeras") a
partir de material genético de espécies humanas e não-humanas.
Mas parece não haver
hoje nenhuma prática, por mais
naturalmente repugnante que seja, imune ao risco de
progressiva banalização, porque as mentes e
sensibilidades se vão embotando e pervertendo a
ponto de se habituarem a tais práticas, por
vezes com pretextos e justificações bem
estudados
para camuflar a realidade. É
este um dos efeitos da chamada "rampa deslizante" (slippery
slope), que se desencadeia quando, no campo da
bioética, se começam a derrubar
algumas barreiras fundamentais.
Soubemos há dias que a Human Fertlization and
Embriology Authority, a entidade britânica que
regula a procriação humana artificial e a
investigação com embriões humanos, não coloca
obstáculos à criação de embriões obtidos através da
transferência de material genético humano
para ovócitos de outras espécies animais a
que foi retirado o núcleo. Tais embriões
("híbridos") serão, assim, compostos de material
genético humano e, em percentagem reduzida, de
material genético de outra espécie animal.
Deste modo se ultrapassaria a dificuldade de
obtenção de ovócitos humanos para
clonagem (de efeitos nefastos para
as mulheres que os fornecem, para o
que já vêm alertando os adversários dessa
prática) e
posterior investigação embrionária com fins terapêuticos.
São estes propósitos terapêuticos (como tem sucedido
com a clonagem humana em geral) o pretexto que serve
para cobrir a natural repugnância que suscitam
essas práticas e que levam a que haja sondagens
(invocadas pelos seus apologistas) que já indicam a
sua
aceitação pela opinião pública.
As terapias em
questão são, porém, uma miragem longínqua e suscitam questões
também no plano da eficácia, quando a eficácia
terapêutica das células estaminais adultas já deu
provas de sucesso. No caso particular de células
embrionárias compostas com material genético humano
e não-humano, há quem saliente a
desadequação, pela sua anomalia, deste tipo de
células para uma qualquer terapia,
ou os riscos de difusão, na espécie humana, de
infecções virais de outras espécies animais. Não
podemos esquecer
que a afirmação dos mais elevados propósitos
terapêuticos pode esconder
bem mais mesquinhas ambições de prestígio ou lucro
num mercado competitivo onde quem actua com menos
barreiras éticas tem evidentes vantagens.
Mas, mesmo que alguma eficácia terapêutica estivesse
demonstrada, não pode
ser ignorado o princípio ético de que os fins não justificam os
meios e de que a
pessoa humana não pode ser reduzida a meio ao
serviço de fins que a ultrapassam, por muito
meritórios que estes sejam. Neste caso, a degradação
chega ao ponto de
derrubar a barreira entre espécies humanas e outras espécies
animais, na qual se apoia, precisamente, o princípio
da dignidade humana (e não é relevante que só uma
pequena percentagem do material genético em
questão
não tenha características humanas).
Tal como se tem feito em relação à clonagem em
geral, procura-se tranquilizar as mentes e as
sensibilidades, dizendo que os embriões em
causa
serão destruídos depois de utilizados e numa
fase
precoce da sua evolução. Essa tranquilidade virá da
circunstância de nunca chegarmos um dia a
ser visualmente confrontados com a "monstruosidade" assim
criada (quem poderá, porém, garantir-nos de que isto
não venha a
suceder?). Mas esta circunstância não tem nenhuma relevância
ética. Trata-se de uma simples estratégia
para mascarar a realidade e "cegar"
a opinião pública. A "monstruosidade" não é menor
por não se
ver. A destruição dos embriões só acrescenta gravidade à
agressão a que estão sujeitos. Não é menor a
gravidade da tortura se a ela se segue a
morte da vítima. E não é por os embriões
estarem numa fase precoce da sua
evolução, terem dimensões mínimas, ou não terem
capacidade de nos
comover com a sua visibilidade
que essa gravidade é, de um ponto
de vista ético (diferente do da simples
emotividade), menor.
Mais uma barreira ética foi derrubada. Qual será a
próxima?