Diário de Notícias - 6 Abr 04

Jorge Ferreira 
 Quarta República

Está neste momento em curso na Assembleia da República um processo de revisão constitucional. Para sermos mais rigorosos devíamos dizer um processo de afinação constitucional, já que na verdade rever a Constituição é projecto que parece totalmente alheio à Comissão Eventual constituída para o efeito.

É, aliás, sintomático que, ao contrário do que é costume, ainda não tenha dado entrada na CERC um único contributo da chamada sociedade civil para o processo de revisão constitucional, a não ser o da Nova Democracia. E o momento até parece indicado e propício.

O país revela cansaço e alheamento da política. Está deprimido e descrente. Um número crescente de cidadãos não vota e dos que o fazem muitos fazem-no por descargo de consciência e não por convicção de mudança.

Não seria natural, por exemplo, que os gestores e os consultores que foram ao Convento do Beato afirmar um Compromisso com Portugal optassem por enviar ao Parlamento um texto com a sua visão das alterações necessárias ao texto fundamental? Seria uma consequência até credibilizante do seu discurso e da sua atitude, mas não o fizeram.

Na verdade, o país já sentiu que desta revisão nada virá de importante. E que deste sistema partidário já nada há a esperar quanto a impulso reformador de um sistema político profundamente caduco e ultrapassado, que cada dia que passa cava mais fundo o fosso do alheamento do país em relação às suas instituições.

E como o país precisa de um novo projecto constitucional! Quase sem se darem conta no dia-a-dia, os portugueses apenas são chamados hoje a participar nas eleições de quem manda menos e não riscam absolutamente nada na escolha de quem manda mais.

Esta disfunção é em parte responsável pelo descrédito em que caiu a instituição parlamentar («eles só dizem mal uns dos outros», forma simplista de reconhecer que o Parlamento não tem poder...) e pela insatisfação com que o país olha a instituição presidencial («o Presidente só corta-fitas e faz discursos», forma simplista de identificar a falta de poder do Presidente da República...).

Uma das soluções é mudar de sistema de Governo.

Trinta anos depois do 25 de Abril há que reconhecer que o actual sistema político português é compreensivelmente tributário da ressaca da ditadura e do gonçalvismo, mas já não serve como programa de futuro, para responder aos enormes desafios com que a sociedade portuguesa está confrontada.

Sobretudo é necessário não ter medo de debater, sem tabus, os focos de estrangulamento do sistema político.

O que se espera da Assembleia da República é que não se reduza ao papel de uma Câmara Corporativa dos interesses instalados e saiba interpretar e tirar consequências, desde logo ao nível da Constituição, das insuficiências qualitativas do actual modelo democrático e do sistema político vigente e da progressiva desorientação de valores e de propósitos na actuação do Estado; isto, mesmo sabendo que a reforma constitucional não soluciona por si só a grave crise de referências e o clima de falta de ética e desorientação reinantes.

A Quarta República de que o país precisa deveria assentar em quatro eixos estratégicos.

O primeiro é a democratização da democracia. Esta democratização poderia passar pelo alargamento do instituto do referendo a questões constitucionais, pela alteração do sistema de governo com a introdução do presidencialismo, pelo fim do monopólio dos partidos políticos na apresentação das candidaturas a deputados à Assembleia da República, pela limitação dos mandatos dos titulares de órgãos constitucionais electivos, pela limitação da imunidade parlamentar e da irresponsabilidade dos juízes às respectivas dimensões funcionais e pela extinção do cargo de Ministro da República nas Regiões Autónomas, numa afirmação de maturidade autonómica.

O segundo é a despolitização da justiça, desiderato a alcançar através da reforma do órgão de topo da justiça constitucional, com a consequente transformação do Supremo Tribunal de Justiça em instância última da justiça constitucional e pela eliminação do privilégio do foro na justiça administrativa.

O terceiro é o da redefinição do papel do Estado na economia, o que passa essencialmente por dar um novo sentido à Parte II da Constituição sobre «Organização Económica» à luz da presença portuguesa na União Europeia, por fazer coincidir o modelo económico definido pela Constituição e o modelo económico efectivamente praticado, consagrando com clareza e sem equívocos o princípio da intervenção económica supletiva do Estado e definindo constitucionalmente as tarefas e os bens públicos insusceptíveis de privatização.

O quarto é o do estabelecimento de um novo contrato social, que passe pela dignificação do papel social da família, por um modelo educativo e fiscal ao serviço das pessoas e, nomeadamente, da maternidade e da infância e por um efectivo reconhecimento das liberdades de apreender e de ensinar como fundamento para uma acção firme do Estado, pelo apoio às escolhas das famílias, de modo a assegurar uma efectiva igualdade de oportunidades a todos os portugueses, com a garantia de qualidade do ensino e a subsidiariedade da acção do Estado.

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