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Público - 29 Abr 06
Socorro: somos todos privilegiados
Um dos aspectos mais proeminentes do discurso
político contemporâneo é que as castas dominantes,
que não perfazem juntas mais do que um por cento da
população, têm por hábito chamar privilegiados à
maior parte dos restantes
99 por cento
Começo por pedir, embaraçadamente,
desculpas. Eu não tenho desejos de insultar aqui
ninguém. Mas tenho a obrigação de, humildemente e na
medida do possível, dizer a verdade. E a verdade é
esta: você é um privilegiado. Estou certo deste
facto e posso demonstrá-lo. Eis a prova: você está
neste momento a ler o jornal. Ora, neste preciso
momento, há gente que tem de trabalhar e não pode
ler o jornal.
Sei bem que pode dar-se o caso de você ser uma
daquelas pessoas que tem de ler o jornal
precisamente como trabalho, por obrigação, como por
exemplo as pessoas que fazem recortes de imprensa
para as empresas de recortes de imprensa. Nesse
caso, peço desculpa por insistir, você é um
privilegiado. O seu trabalho é ler e recortar
jornais, quando há gente que trabalha em minas de
carvão. Eles podem morrer soterrados; você pode - no
máximo! - dar um golpe num dedo. Seja como for, e
para encurtar argumentações, você sabe ler. Quer um
sinal mais claro de que é um privilegiado?
Tomemos por exemplo as manifestações francesas do
mês passado, que derrotaram o primeiro-ministro
Dominique de Villepin e a sua proposta de Contrato
Primeiro Emprego (sob a qual os jovens até aos 26
anos poderiam ser despedidos sem justa causa). Como
sabemos, os manifestantes eram privilegiados, porque
eram estudantes. Poder-se-ia objectar a isto que as
manifestações foram apoiadas pelos sindicatos e
integradas por trabalhadores. Mas acontece que estes
trabalhadores também são privilegiados, desde logo
porque têm um trabalho que lhes permite fazer greves
e vir a manifestações. Se fossem trabalhadores
ilegais ou imigrantes indocumentados e
semiescravizados, não poderiam fazê-lo. Mas mesmo
que o fossem, não deixariam de ser privilegiados;
afinal de contas, têm trabalho quando há tanta gente
desempregada.
Um dos aspectos mais proeminentes do discurso
político contemporâneo é que as castas dominantes -
gestores e economistas de topo, membros de conselhos
de administração, banqueiros, capitalistas e
porta-vozes de associações industriais, marqueteiros
e gestores de imagem, líderes de directórios
partidários, governantes, colunistas ou
editorialistas -, que não perfazem juntas mais do
que um por cento da população, têm por hábito chamar
privilegiados à maior parte dos restantes 99 por
cento.
Daqui resulta uma inversão do sentido de
privilegiado. Historicamente, o privilégio é
excepcional; dele usufrui uma categoria restrita. Os
grandes de Espanha ganharam o privilégio de não
tirar o chapéu em frente aos reis. Eram vinte e
cinco famílias. A isso é que se chamava, outrora,
privilegiado. Hoje, chama-se privilegiado a uma
estudante que não pague o custo total do seu curso
ou a alguém que tenha emprego, e este mero facto é a
ilustração grotesca de quão baixo e mesquinho
descemos na Europa, no período de apenas uma
geração.
A continuar assim, serão "privilegiados" todos
aqueles que não estiverem a morrer de febre
hemorrágica em África.
Mas curiosamente, nunca são estes que trazem o tema
do privilégio para a praça pública. Os desempregados
não atacam o privilégio de se ter um emprego; querem
apenas conquistá-lo. Mas um banqueiro como Fernando
Ulrich, que tem poucas oportunidades de ficar
desempregado, sugere que se liberalize o
despedimento em Portugal - a benefício,
supostamente, dos desempregados. Folheando as
secções de economia dos jornais, facilmente
encontramos senhores (e mais raramente senhoras) que
podem determinar o valor das suas pensões ou
aumentar-se legalmente a si mesmos, mas que acusam o
cidadão comum de, com os seus privilégios, colocar
em risco a sobrevivência de Portugal.
Com a recente chegada do Partido Socialista ao
poder, deu-se também uma inovação na retórica do
privilégio, perguntando-se muitas vezes o seguinte:
será que combater o privilégio não é o combate pela
justiça e pela moralidade e, afinal de contas, o
combate histórico da esquerda?
A pergunta feita assim oculta um elemento essencial
da resposta. É que não se acaba com um privilégio
restringindo-o. Bem pelo contrário, a restrição
torna a desigualdade do privilégio ainda mais
gritante, como demonstra o embaraço, logo nos
primeiros meses do governo, com o regime de pensões
do Banco de Portugal.
Ora o combate histórico da esquerda tem sido de
facto acabar com os privilégios, alargando-os. Por
exemplo: na Revolução Francesa acabou-se com o
privilégio de não se ser sujeito a tortura, que era
exclusivo dos nobres. Mas acabou-se com esse
privilégio alargando a isenção, que dantes era só
dos nobres, e não a própria tortura. Alargar a
tortura a toda a gente, incluindo os nobres, também
teria "acabado com o privilégio", mas não seria
justo nem moral, porque teriam alguns perdido sem
nenhum dos restantes chegar verdadeiramente a
ganhar. A verdadeira abolição de um privilégio é,
pois, a sua generalização.
Infelizmente, existem casos mais bicudos do que
este. Nem sempre é possível, por razões práticas,
acabar com os privilégios através da sua
generalização. Nesse caso, é legítimo diminuí-los,
desde que todos nos encontremos a meio do caminho.
Ao contrário daquilo que nos dizem os nossos
instintos mais mesquinhos, se Fulano perde o emprego
seguro para eu continuar desempregado, ou se Sicrano
perde as férias para eu continuar a não ter
nenhumas, isso não me aquece nem me arrefece. Antes
de avançar, é preciso demonstrar claramente os
benefícios gerais da medida.
É essa demonstração que, tantas vezes, se perde
pelos caminhos da política. Se continuarmos a chamar
privilégios a coisas como estudar ou ter um emprego,
que uma parte grande da população partilha e de que
toda a sociedade beneficia, esquecemo-nos de
verdadeiros privilégios que fariam a inveja dos
Grandes de Espanha. Ora, como dizia o padre António
Vieira, se é preciso muito peixe miúdo para
alimentar um peixe grande, somente um peixe grande
bastaria para alimentar muitos pequenos. Historiador |