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Público - 29 Abr 06
Partidocracia
São José Almeida
A questão a debater é, assim, a do funcionamento
do sistema político como um todo.
Um sistema político que se esgota na partidocracia,
que não dá espaço à sociedade civil para se
manifestar, porque os partidos têm a hegemonia do
sistema. Partidos de poder, cada vez mais iguais
uns aos outros, cada vez mais fechados à sociedade,
que funcionam em cartel
Os 32 anos do 25 de Abril foram
assinalados, mais uma vez, pela sessão solene da
Assembleia da República e pelas festas populares e
manifestações de rua. Este aniversário de Abril
celebrou-se, porém, no meio de um ambiente de
alegada crise provocada pela histeria da comunicação
social à volta da falta de quórum para votações no
plenário de 12 de Abril, que redundou tão-só no
epifenomeno populista e demagogo, que nada de
realmente substancial deverá trazer para o debate
que urge fazer sobre o descrédito da política, sobre
a crise das democracias parlamentares e os ajustes
necessários nos sistemas políticos para os adaptar à
aceleração dos tempos da comunicação. Nada disto é
novo, mas tem sido ostensivamente ignorado. Assim,
agindo pavlovianamente, sem reflectir, motivados
apenas pelo sentimento antipolítica, que se
concretiza na já comum prática da caça ao deputado,
e auto-ungidos de um poder moralista e justicialista,
bacoco, mas perigoso, e revelador de uma profunda
ignorância sobre o que é o debate acerca do lugar
dos parlamentos na democracia hoje, muitos
jornalistas assumiram o papel de delatores dos
ausentes. Numa ânsia louca de apontar o dedo aos
faltosos. Reduzindo a sua função a relógios de
ponto. Como se a Assembleia da República fosse uma
repartição pública e os deputados funcionários e não
representantes políticos cujo mandato é legitimado
pela eleição directa.
Não interessa perder muito tempo a debater a
importância de apertar regras de fiscalização de
deputados. É o mesmo que tratar uma pneumonia com
aspirinas, como muito bem explicou, segunda-feira,
no PÚBLICO, Pedro Magalhães, que é, aliás, co-autor,
com André Freire, António Araújo, Cristina
Leston-Bandeira e Marina Costa Lobo, do último
grande estudo sobre a AR (O Parlamento Português:
Uma Reforma Necessária), na sequência do grande
estudo, feito nos anos 90, por Luís Sá (O Lugar da
Assembleia da República no Sistema Político).
Estudos específicos que vêm comprovar a tendência
geral para a desvalorização do papel tribunício e de
contraditório democrático dos parlamentos, função
deslocada para a comunicação social pela aceleração
do tempo comunicacional, e confirmar a valorização
do papel de fiscalização e de representação, através
do trabalho em comissão e junto dos eleitores. Um
debate em que cada vez mais se discute a necessidade
da presença pessoal do deputados nas votações ou se
esta função pode ser delegada em outros deputados ou
nos líderes de bancada.
O descrédito da política é real e não se materializa
apenas na opinião sobre o Parlamento, nem se resolve
com castigos e multas. Infelizmente é mais profundo
e global, se bem que em Portugal tenha adquirido já
formas espantosas. Manifestações visíveis quer nos
níveis de abstencionismo, quer na adesão a novos
partidos. Isto pode ser analisado historicamente no
PRD e no fenómeno populista do eanismo, mas ganhou
novas formas na recente afirmação do BE. O BE é um
partido que nasce claramente do descontentamento com
o sistema político e com a hegemonia da
partidocracia reinante e que vive os momentos de
maior vigor e de expectativa até se tornar um
partido igual aos outros, com um projecto de poder e
com uma organização interna que até já inclui
sanções como a expulsão. Mais recentemente ainda,
basta olhar para as presidenciais e ver a votação em
Manuel Alegre.
O problema é profundo e tem a ver com a forma como a
democracia foi adoptada após o 25 de Abril - ou
seja, as regras que foram instituídas para obrigar à
solidificação do regime e que instalaram, para o bem
e para o mal, a partidocracia ainda hoje vigente.
Isto com o argumento, válido, de que, após 48 anos
de ditadura fascista, era preciso que os partidos,
essenciais a qualquer democracia, se sedimentassem,
para mais quando apenas o PCP e o PS vinham da
clandestinidade e do exílio. Mas estas regras de
exclusividade dos partidos na vida política
conduziram ao desfasamento actual destes com a
população. Já em 1984, no colóquio que decorreu na
Gulbenkian, assinalando os dez anos da revolução,
Fernando Piteira Santos advertia: "Criou-se,
formalmente, o "Estado democrático", não se
democratizou a sociedade portuguesa. Definiu-se a
democracia como plural (o que era redundante, porque
óbvio) e participativa. O art. 48º da Constituição,
nº. 1, diz: "Todos os cidadãos têm o direito de
tomar parte na vida política e na direcção dos
assuntos públicos do país, directamente ou por
intermédio de representantes livremente eleitos."
Mas este direito sofreu limitações: a participação
cívica ficou, na realidade, condicionada à
actividade em "associações" ou "partidos políticos",
aos quais se reconheceu a vocação e a função de
"concorrer democraticamente para a formação da
vontade popular e a organização do poder político"
(art. 51º) (...). Partidarizada a vida nacional com
o prejuízo de se constituírem clientelas a todos os
níveis, a todos os níveis se verificando
favoritismos, selecções e promoções facciosas. A
democracia com partidos converteu-se em democracia
dos partidos. Estes disputaram e ocuparam
(alternativamente) o Estado; mas não o
democratizaram."
A questão a debater é, assim, a do funcionamento do
sistema político como um todo. Um sistema político
que se esgota na partidocracia, que não dá espaço à
sociedade civil para se manifestar, porque os
partidos têm a hegemonia do sistema. Partidos de
poder, cada vez mais iguais uns aos outros, cada vez
mais fechados à sociedade, que funcionam em cartel,
quase como empresas para arranjar empregos públicos
e fornecer os gestores do Estado. E que se sentem à
vontade para se arvorarem em donos do sistema
político e permitem que singrem no seu seio os
medíocres e os videirinhos, que em nada dignificam a
política, apenas se servem dela. Daí a importância
das desassombradas declarações de António Capucho ao
PÚBLICO, denunciando que a política e o serviço
público estão nas mãos de meia dúzia de caciques que
dominam os aparelhos. Uma denúncia a que as
direcções partidárias não devem continuar a fechar
os olhos.
Há um debate a fazer em Portugal, que não passa por
histerias e justicialismos caça-deputados, sob pena
de um dia os partidos parlamentares e os seus
políticos ficarem a falar sozinhos e a vitória ser
não da democracia, mas do partido da abstenção. Até
porque a democracia não se estabelece por direito
divino, nem é um dado adquirido e não reversível. |