Público - 26 Abr 07
A (falta de) originalidade de Cavaco
Pedro Vassalo
Também ele vai ficar na história. Talvez mude de
ideias "quando o levarem a ele". Talvez. Mas talvez
seja tarde de mais
O projecto do BE associado, mais uma vez, ao PS
sobre a utilização de restos de abortos para a
investigação científica não pode espantar ninguém.
Nos debates que antecederam o referendo ao aborto, e
lembro especialmente um Prós e Contras, essa
hipótese foi levantada pelos defensores do "não". Na
altura, foram, naturalmente, acusados de usar um
argumentário tenebroso, de imaginar um mundo de
ficção que só existe em mentes tortuosas, de deitar
mão a imagens fantasmagóricas e por aí fora. Pois
bem, ora aí está o tal futuro de ficção que só
existia na cabeça de alguns: os restos de humanos,
por nascer, e cujos pais não os querem, vão ser
usados em investigação científica.
Nada disto espanta, nem surpreende, porque tudo isto
era demasiado previsível. Há dias, na SIC, um spot
de promoção afirmava, tendo por fundo imagens
terríveis da II Guerra Mundial, que é importante
lembrar o passado, porque todos aqueles crimes podem
voltar a acontecer. O slogan não é exactamente este,
mas o sentido é semelhante.
E, de facto, há demasiadas atrocidades, causadas
pelo Homem ao próprio Homem, aceites e sufragadas
por vastas maiorias. Basta recuar uns 60 anos e ler
a história da Europa. Aliás, por sinal, a mesma
Europa que se recomenda ao mundo como campeã dos
direitos e da liberdade. A este propósito, um amigo
lembrou-me um texto de Brecht que explica a
cegueira: "Ao princípio, levaram os comunistas, mas
não me importei porque não era nada comigo; em
seguida, foram os operários, mas não me afectou
porque não sou operário; depois prenderam os
sindicalistas, mas não me incomodou porque não sou
sindicalista; chegou a vez dos padres, mas não me
incomodou porque não religioso; agora levaram-me e
quando percebi... já era tarde de mais."
Não espanta a decisão do referendo do dia 11 de
Fevereiro. Há séculos que a crueldade se renova. Mas
surpreende outro facto. O que se sabe, em números
redondos, é que um em quatro eleitores votou na
alteração da lei. Resulta da matemática que os
remanescentes três (em quatro) eleitores ou não
queriam mudar a lei, ou não se interessaram. Seja
como for, dificilmente se poderá falar numa maioria
significativa. Seria, aliás, uma boa altura para os
promotores do "sim" explicarem o slogan "abstenção é
votar "não"". A ideia só os compromete a eles.
Como era esperado, o parlamento votou a alteração da
lei. Mas há, como se sabe, constitucionalistas de
renome que defendem que essa mudança fere a
Constituição. Esperava-se, por isso, e naturalmente,
que a Presidência, no mínimo, indagasse sobre a
legalidade da lei. Mas não. O Presidente preferiu
optar pelo incompreensível. Assinou-a sem questionar
e tratou de lembrar, propor, sugerir (escolham), uma
série de alterações. Aconteceu o previsível: o
Governo mandou às malvas a missiva presidencial,
explicou-lhe que era tarde para ter opinião, que a
decisão estava tomada e lembrou que o Presidente ou
vetava o diploma ou o enviava para o Tribunal
Constitucional. Sem mais!
Custa perceber como o professor Cavaco Silva,
avisado e prudente, se deixou enredar em tal trama.
Resta uma hipótese, plausível, politicamente
correcta e até astuta: o Presidente quer agradar a
gregos e a troianos: dizer aos que votaram "não" que
até nem concorda com a lei e aos que votaram "sim"
que até a assinou. Admito que seja a jogada política
mais correcta. Tem o pequeno problema de não ser
original. Lembro-me de um governante que fez o
mesmo, por um caso menor na altura, mas que, hoje em
dia, dois mil anos depois, ainda se fala disso.
Parece-me que Cavaco Silva também vai ficar na
história. Talvez mude de ideias "quando o levarem a
ele". Talvez. Mas também talvez seja tarde de mais,
como descobriu Brecht.
Activista do "não"