Público -
14 Abr
08
Os abusos do fisco, ou ter dois pesos e duas
medidas
José Manuel Fernandes
Uma coisa é combater a fraude e a evasão fiscal.
Outra coisa é cobrar impostos sem conta, peso e
medida
Em Portugal, criou-se a ideia de que todos fogem ao
fisco excepto os trabalhadores por conta de outrem,
que não podem fugir. Esse discurso levou ao aumento
da pressão da máquina, mas de forma que também
provocou o aumento do número de queixas junto do
Provedor de Justiça, que produziu um relatório onde
apontou para abusos dos serviços oficiais que
resultam, por regra, em prejuízo para o
contribuinte. Este discurso assume mesmo foros
patológicos nalguns partidos, como o PCP e o Bloco
de Esquerda, que transformam por sistema práticas
legais de planeamento fiscal em "crimes" de fuga ao
fisco, exercício em que, por regra, é o sistema
bancário o bombo de festa. Isto quando o planeamento
fiscal é não só legítimo, como constitui um
instrumento que permite aos contribuintes, sejam
eles individuais ou colectivos, realizar operações
financeiras que, sem prejudicar o erário público,
beneficiam a economia.
Mas pouco se fala da forma como o nosso sistema
fiscal é draconiano a cobrar juros sobre as dívidas
fiscais (fá-lo à taxa usurária de um por cento ao
mês, ou seja, numa taxa composta de 12,7 por cento
ao ano...) e relapso a repor o que cobrou a mais,
aplicando às suas dívidas apenas uma fracção dos
juros que cobra. Mas esta é apenas uma das muitas
iniquidades de um sistema que trata os cidadãos, por
regra, como criminosos até prova em contrário.
Sobretudo os que não podem recorrer a advogados, têm
menos possibilidades de se defender e conhecem pior
a lei, nem chegando a perceber que estão a ser
vítimas de uma máquina cada vez mais implacável e,
também, injusta.
Se não há almoços grátis, também não há milagres,
razão pela qual o aumento da carga fiscal suportada
pelos portugueses (só com este Governo passou de
22,8 por cento para 24,8 por cento de toda a riqueza
gerada no país) não se explica pelo aumento de
alguns impostos, mas pela forma como a administração
fiscal tem cortado a direito, muitas vezes
recuperando dívidas reais, muitas outras maximizando
as cobranças para além do que a lei permite. Quase
todos os contribuintes já passaram por tais
situações, ou conhecem queixas de amigos ou
familiares.
É neste quadro que deve ser lida a notícia do
Correio da Manhã de que a administração fiscal quer
enviar para a prisão os contribuintes condenados por
crimes fiscais que se estejam a atrasar no pagamento
das suas dívidas. Formalmente, este é um seu
direito, pois tratar-se-á de contribuintes que
retiveram impostos e não os entregaram ao Estado, a
única situação em que um crime fiscal pode dar pena
de prisão, pois não se trata de uma mera fuga ao
fisco, mas de um crime de abuso de confiança.
Muitos se recordarão, contudo, de que o primeiro
caso deste tipo a levar alguém à prisão foi o que
envolveu um empresário, de apelido Cebola, que não
entregara ao Estado impostos que retivera (IVA e o
IRS dos trabalhadores) para não ter salários em
atraso. Entretanto, houve muito mais processos que
resultaram em condenações e em muitos deles a
actuação dolosa dos contribuintes não suscitará
muitas dúvidas. Mas é de temer que, em muitas
situações onde os tribunais optaram por aplicar aos
faltosos uma pena suspensa desde que pagassem as
suas dívidas, o incumprimento não se deva a dolo,
mas à real impossibilidade de cumprir com os
pagamentos previstos num tempo de crise económica
indisfarçável.
Felizmente, a decisão de enviar ou não para a prisão
os faltosos dependerá de uma decisão judicial, e
espera-se que os juízes tenham um mínimo de bom
senso e equilíbrio. E a compreensão que não tiveram
no célebre "caso Cebola". O fiscalista Saldanha
Sanches, que muitas vezes está entre os mais
fundamentalistas, tem desta vez razão. Como ele
dizia ontem, "é preciso ter cuidado na aplicação da
pena de prisão nos crimes fiscais e fazer a
distinção entre o empresário que enriqueceu, não
pagou o IVA e levou a fábrica à falência e o
comerciante que não pagou porque o negócio não está
a correr bem".
Parece elementar, mas nunca se sabe. Sobretudo
quando, nas repartições de Finanças, as instruções
são para não negociar o pagamento em prestações de
dívidas fiscais, recomendando antes aos devedores
que recorram a empréstimos bancários. E, nos balcões
de muitas instituições bancárias, são cada vez mais
os contribuintes que, sem terem cometido outro crime
para além de estarem a enfrentar mais encargos com
os juros da compra da sua casa ou terem visto
diminuir os seus rendimentos reais, têm dificuldades
em pagar o acerto no IRS. Ou que estão a ir à banca
porque o Estado não lhes pagou ainda dívidas mas já
lhes está a cobrar o imposto sobre verbas que não
receberam, como também acontece. A diferença, neste
caso, é que nunca um director-geral, um autarca ou
um ministro que encomendou o que não podia pagar a
horas foi alguma vez parar à prisão...