Comissão Nacional de Justiça e Paz - 8 de Agosto

O TRATADO DE NICE


O Tratado de Nice e o futuro da União Europeia têm sido objecto de muitas análises e tomadas de posição na Europa e, também, no nosso País.

Sobretudo após a consulta popular na República da Irlanda que se saldou por uma maioria de votos desfavoráveis ao novo Tratado, a discussão que antecede a sua ratificação pelos Estados-membros ganha novos contornos e estimula uma renovada participação da sociedade.

Em Portugal, tradicionalmente indiferente ou, pelo menos, distante do debate europeu, têm vindo a surgir espaços de reflexão e iniciativas meritórias para aprofundar as consequências na nossa vida colectiva do novo figurino da União Europeia, com destaque para as audições da própria Comissão especializada da Assembleia da República.

Como tal, a Comissão Nacional Justiça e Paz não pode deixar de exprimir a sua opinião e de dar o seu singelo contributo numa perspectiva que não sendo obviamente de cariz técnico, procura suscitar os aspectos que lhe parecem mais relevantes no âmbito das suas preocupações.

Neste enquadramento, quatro pontos - entre outros - do Tratado merecem mais a atenção da CNJP:

- o alargamento da União Europeia
- as novas relações de poder no seio da União
- a (ausência) de um fundamento de valores comuns
- a construção de uma Europa de (e em) solidariedade


Na perspectiva do alargamento da União Europeia, o tratado de Nice deve ter em atenção a situação muito específica dos países do Leste europeu. Estes países, que viveram décadas sob um regime que não só os privou da liberdade como lhes travou o crescimento económico, fazem agora enormes esforços na preparação das suas economias e das suas sociedades para uma próxima integração na UE. Nem sempre a União tem correspondido verdadeiramente a tal esforço, na parte que lhe toca de adaptar as suas instituições ao seu funcionamento com 25 ou 30 países membros.

Com considerável atraso, o Tratado de Nice surge como um modesto passo no sentido dessa indispensável adaptação das instituições comunitárias ao alargamento da UE. A solução encontrada não parece, porém, satisfatória.

Por um lado, o Tratado de Nice reforça a dimensão intergovernamental da UE, em prejuízo da dimensão propriamente comunitária. Acentua-se, assim, o perigo de a União passar a ser comandada sobretudo por um directório dos Estados-membros mais ricos e populosos. Uma tal tendência, contrária ao espirito dos fundadores da Europa comunitária, deverá ser evitada a todo o custo, até porque prejudica os países de menor dimensão, como Portugal. 

De um ponto de vista democrático, não é aceitável construir uma pretensa Europa solidária na base de uma oligarquia de Estados-membros traçando o destino dos outros, privando-os de intervir substantivamente nos processos de decisão que lhes dizem respeito e estabelecendo uma teia de competências tão complexa que pode pôr em causa o princípio basilar e fundacional da subsidiariedade.

As vias encontradas em Nice, em particular quanto ao processo de decisão no Conselho, não garantem a operacionalidade e o bom funcionamento da União. Afigura-se, até, que o novo dispositivo tornará extremamente difícil a tomada de decisões quando não exista unanimidade no Conselho de Ministros, o que afectará a eficácia da construção europeia.

O essencial, porém, é não frustrar as legítimas expectativas dos países candidatos à adesão. Os portugueses, para quem a adesão à então chamada CEE representou um enorme impulso à consolidação da democracia e ao desenvolvimento económico, têm a obrigação de compreender o empenhamento actual dos países do Leste europeu na adesão à UE. Decerto que o alargamento da União envolve razões de ordem política: nenhum dos actuais Estados-membros pode ficar indiferente ao contributo decisivo que o alargamento dará à segurança no continente europeu. A integração europeia nasceu de uma ânsia de paz e o alargamento insere-se nessa linha.

Mas a Comissão Nacional Justiça e Paz gostaria de acentuar principalmente a dimensão ética do alargamento: é um dever moral dos países da União contribuírem para que os países candidatos possam, também eles, beneficiar tão depressa quanto possível das vantagens da adesão. É um imperativo da reforma europeia poder vir a estabelecer-se uma irreversível comunidade de solidariedade, baseada não só na paz, cooperação e segurança, como no desenvolvimento humano harmonioso e na coesão e na prevenção sociais.

Nessa perspectiva, o Tratado de Nice aparece como positivo apenas quando comparado com a alternativa de não existir tratado algum, levando a adiar o alargamento. Mas, porque insatisfatório, o Tratado de Nice necessita de ser melhorado. Este objectivo não pode, todavia, ser satisfeito através do recorrente modo como os dirigentes europeus julgam ultrapassar divergências, diferenças e dificuldades, ou seja contornando-as, adiando-as, criando efémeros e circunstanciais consensos sem força e sem convicção.

O futuro da União Europeia envolve também um desafio ético para a sociedade política e civil.
Muito concentrada nos aspectos económicos e materiais, a Europa política tem secundarizado, nas suas políticas e na afirmação dos seus princípios, outros aspectos essenciais de uma exigente construção europeia.

Certamente que os aspectos económicos, financeiros e monetários são determinantes para a construção de um espaço europeu alargado de progresso e de desenvolvimento. Não obstante, o grande desígnio europeu não pode deixar de também passar por uma Europa construtora de solidariedade, uma potência justa e exemplar na defesa intransigente da dignidade da pessoa humana, sensível ao sofrimento dos mais desfavorecidos e à necessidade de apoio humano aos imigrantes legalizados e comprometida com objectivos e valores éticos e culturais.

Neste sentido se, por um lado, a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia é um passo meritório, não deixa de revelar, igualmente, uma menor consideração se não mesmo o desprezo dos dirigentes europeus pela matriz cristã do património cultural da Europa, de adoptar referências éticas minimalistas ou relativistas e de gerar alguma ambiguidade no que respeita à família, ao direito à vida e ao papel das comunidades religiosas.

Em suma, na Europa do futuro não se pode cair na tentação de perder de vista o essencial na ânsia de pôr em prática apenas o instrumental. A Europa do futuro não pode ser construída na primazia dos meios e na atrofia dos fins e dos desígnios geracionais. A Europa do futuro será bem sucedida se souber aliar o progresso social e económico das sociedades ao fortalecimento da riqueza espiritual que lhe deve estar associada e à busca incessante do bem comum. 

Lisboa, Agosto de 2001

Pela Comissão Nacional Justiça e Paz
António Bagão Félix
 

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