Diário de Notícias - 13 de Agosto
O trigo e o joio
Um homem semeou boa semente no seu campo. Enquanto todos dormiam,
veio o seu inimigo, semeou joio no meio do trigo e foi-se embora. Quando
o trigo cresceu e fez espiga, apareceu também o joio. Os servos do
proprietário foram procurá-lo e disseram-lhe: "Senhor, não
semeaste semente boa no teu campo? Donde vem, pois, o joio?" Ele
respondeu: "Foi um inimigo que fez isso". Os servos
perguntaram-lhe: "Queres, então, que vamos arrancá-lo?" Ele
respondeu: "Não, para que não aconteça que, ao arrancar o joio,
arranqueis também o trigo. Deixai que os dois cresçam juntos até à
colheita."
O caso tornou-se conhecido nas redondezas. Todos os vizinhos
lamentavam que no meio daquela bela seara de trigo houvesse tanto joio.
A questão era o grande tema de conversa da aldeia, à lareira, depois
do dia de trabalho. Mas
como esse ano fora
próspero, as pessoas tinham tempo livre durante a tarde juntando-se nas
praças ensolaradas a conversar. Por falta de outro assunto, a
situação da seara era muito discutida.
Alguns mais ociosos começaram a defender opiniões estranhas. Diziam
que a tradicional distinção entre trigo e joio era antiquada e
injusta. Afinal, o joio era também uma planta como as demais, e tinha
direito a crescer e a desenvolver-se. A discriminação entre ervas era
inaceitável, o resultado de um racismo retrógrado e tacanho. O campo
era livre e todas os vegetais tinham igual direito a existir e a
desenvolver-se.
Esta posição começou por despertar grande estranheza na aldeia, e
quase ninguém a considerava. Mas a pouco e pouco foi-se espalhando.
Sobretudo depois da notícia de uns cientistas terem demostrado ser o
código genético do joio muito semelhante ao do trigo.
Por isso, disseram muitos, não havia base científica para o "apartheid"
das plantas. Um estudo internacional chegava mesmo a afirmar que, a
nível molecular, o trigo era apenas uma variante de joio. Tudo isto
demonstrava que as diferenças não passavam de velhos preconceitos.
Claro que houve quem chamasse a atenção para o facto de o trigo
servir para fazer pão e outros alimentos, enquanto o joio era inútil.
Era por isso, aliás, que se sempre se cultivara o trigo para alimentar
as pessoas. Mas as novas filosofias desprezaram estas visões
subjectivas e ideológicas, sem a menor justificação científica. As
plantas do campo nada podiam dizer acerca da panificação e de outras
realidades abstractas e invisíveis para elas. De facto, na seara não
havia qualquer prova real da existência de actividades depois da
colheita. As plantas morriam e tudo acabava. Toda aquela conversa acerca
de celeiros, moinhos, fornos e padeiros não passava de mito e
superstição. Como era possível justificar a distinção entre o trigo
bom e o joio mau apenas com base em especulações sobre a hipótese de
vida depois da colheita e fora da seara?
Alguns mais afoitos chegaram mesmo a negar a própria existência do
proprietário do campo, dono da seara e o criador do trigo. Como provar
a sua existência ? Mas, mesmo que o proprietário exista, como as
plantas crescem sem que ele intervenha, é evidente que ele vive
afastado e desinteressado do campo. Não tem influência sobre a seara,
as plantas devem viver como se ele não existisse.
A única coisa que importa, pois, é o campo e o tempo presente. Só
nisso nos podemos basear, pois é só isso que vemos. As teorias da
existência da agricultura e do proprietário do campo cultivador não
passam de especulações religiosas e abstractas.
E toda a conversa acerca da bondade do trigo e da maldade do joio
são tolices moralistas. No campo, o trigo e o joio são iguais em
direitos.
Vivemos para lá do bem e do mal.
Da tolerância e igualdade passou-se em breve para atitudes mais
ousadas.
Nasceram os movimentos de defesa do joio, que pretendiam liberalizar,
legalizar, apoiar e promover essa erva nas suas
múltiplas variedades. Até porque, diziam, o joio é uma planta muito
mais interessante, variada e divertida do que o sensaborão trigo.
Publicaram-se revistas de divulgação dos encantos do joio e múltiplos
programas de televisão radical apregoavam as suas virtudes.
Esta questão tornou-se rapidamente dominante. Na aldeia as pessoas
dividiam-se entre os moderno e progressistas, que defendiam a liberdade
e o progresso do joio, e os tradicionalistas e fundamentalistas, que
mantinham os velhos tabus e continuavam a considerar o joio como mau e o
trigo como a única planta legítima numa seara. Mas estas relíquias do
passado foram desaparecendo e os movimentos a favor da liberdade e
tolerância ganharam apoio crescente. Alguns jovens mais extremistas
propunham mesmo arrancar imediatamente todo o trigo, para que o joio se
pudesse desenvolver em verdadeira liberdade.
Finalmente, um dia chegou o tempo da colheita. Veio então o
proprietário do campo e disse aos que cortam o trigo: "Arrancai
primeiro o joio e atai-o em feixes para ser queimado. Depois, recolhei o
trigo no meu celeiro." (Mt 13, 30.)