10 de Dezembro de 2000 - Diário de Notícias

Nós, abortos heterossexuais

Rita Rodrigues

Nós, porventura coitados, que aguentamos desde crianças a eventual sensaboria de uma orientação única. Nós, porventura pobres de espírito, que temos vergonha de dizer que o sexo oposto não só nos basta como que não sonhamos com mais nenhum. Nós, pobres de nós, que nem no Carnaval experimentamos a frescura da consolação de uma outra máscara. Nós, porventura néscios, que já achamos dificílimo vestirmo-nos de nós mesmos e que pasmamos perante quem se veste ou se desdobra numa, em duas, em 18 personas sem se enganar na rua ou na porta de casa. Nós, porventura parvos, que nos estudamos com calma e vigilância, atentos a todas as vozes que sibilam dentro de nós, mas não ouvindo deliberadamente algumas delas, numa cautela socrática. Nós, certamente infelizes, que temos de gramar os próprios intelectuais a dizerem-nos "não sabes o que perdes", "és escravo da tua cultura", "a desobediência é a maior das virtudes", ou "infeliz de ti, burguês, que morrerás sem conhecer a plenitude!".
Nós, porventura ignorantes, que reconhecemos nos outros caminhos o mérito da curiosidade, a independência da escolha, o gozo da novidade, o prazer da transgressão, a eventual intensidade de uma relação entre congéneres, mas a quem a experiência não consta da nossa lista de prioridades e a quem a digressão em si não tenta nem exalta.

Nós - a maioria? -, a quem a simples ideia do reverso dói, e, trouxas, a chegamos a recusar a companheiros ou cônjuges. Nós, porventura cegos, que acreditamos que o amor entre mulheres pode ser sublime, suado e bestial, mas que ainda assim pensamos - ó pateteira, ó camelice - que sempre lhe faltará qualquer coisa de essencial, original, matricial. Nós, porventura burros, que queríamos tanto acreditar, como Santareno e outros, que os rios podem correr de baixo para cima, mas a quem não foi dada, pobre de nós, a graça da revelação.

Nós, porventura parolos, que temos a mesma imaginação e que nascemos com as mesmas hormonas, mas que as contrariamos por vezes para não descer a infernos onde sabemos não poder viver sem definhar, perder o norte, fazer vítimas, magoar terceiros, fenecer. Nós, porventura anormais, que nascemos com esse instinto de sobrevivência certamente bacoco. Nós, porventura rústicos, a quem os outros mundos nos espantam ou intrigam, nos desafiam ou desprezam, nos gozam ou acenam, mas que nos deixamos ficar no nosso por medo ou coragem, escrúpulo ou acção de graças, fé ou suspeita, mas que nos deixamos ficar com o mesmo direito de quem parte para outros! Nós, porventura cretinos, que fazemos amor da única forma que conseguimos conceber, da única que o corpo nos pede e da única que se ajusta à nossa forma de dar, e que caímos de joelhos a pedir perdão aos outros por tanta e tão descarada tacanhez!

Nós, porventura básicos, que recebemos em casa pessoas de todas as cores, de todos os credos e de todos os sexos, porque achamos que é assim que tem de ser, mesmo encontrando em certos perfis vícios que nos alertam, doenças que nos assustam, perversões que podem, talvez só possam, desgraçar-nos. Nós, já de nós desgraçados, que contrariamos diariamente aquilo a que chamamos "preconceito", mesmo sabendo que, dentro daquilo a que chamamos preconceito, habitam valores que se não matam ou desligam à vontade do freguês!

Nós, doidos varridos que, industriados por uma noção cada vez mais abstracta e traiçoeira chamada "comunidade", encorajamos os nossos filhos a darem-se com todos os perfis, mesmo cerrando os dentes à roleta russa da vertente pederasta que há em muitos. Nós, porventura tontos, que não excluímos nada, a diferença ou a aliança, a amizade ou o amor em qualquer versão, nós - burros, tontos, idiotas, cretinos, néscios, ignorantes e cegos! -, nós andamos siderados com o que vemos e ouvimos no silêncio das nossas almas atónitas.

Abrimos a televisão e aí estão eles, ou aí estão elas, e aí estão eles e elas, e aí estão eles que são elas e aí estão elas que são eles, franciscos de dia e scarletes de noite - "Como prefere que o trate? Por senhor ou por senhora? Como devo dizer?, bonita ou feio? Que casa de banho lhe indico? A minha, a de meu marido ou a de meu filhinho?" -, vestidos de Zsa-Zsa Gabor ou de Zorba, o Grego, de cabelos loiros e anelados, timbres graves e barbas depiladas, perucas e bigodes, maçãs-de-adão e soutien Triumph, arregalando os olhos dos nossos filhos: "Mamã, o que é aquilo? São senhores ou são senhoras?" "Querido, deixa a mamã ouvir se o senhor foi ou não ao doutor. Se não deixas ouvir, a mamã não te pode responder - percebes, querido?"

Não, não percebes, ou quando perceberes é cedo.

E aí estão eles, ou elas, mulheres ou homens conforme a hora e a indicação dos próprios, consultando o relógio - "Para já é Alfredo, se não se importa..." -, alegres e tristes, talentosos, vistosos, garridos, trágicos, desesperados, trocistas, populares, revisteiros, afectados, mexeriqueiros, castiços, humanos - sim, claro, iguais a nós! -, numa perdida unidade que nos toca e nos comove para, no fim de toda esta compreensão que suplicam e conseguem, e de toda esta humanidade que convocam e recebem, dizerem frases edificantes do tipo: "O que é que pensam? Há muitos políticos, muita gente importante que também faz o mesmo e que também frequenta os mesmos sítios. Olecas! Ouve, se esta boca falasse....", numa ameaça cobarde, numa ignóbil ilusão de poder e de chantagem, e que, ao ameaçar que denunciam outros, tudo comprometem: o direito à diferença, ao pudor e à própria cobardia, e, pior ainda, a total aceitação que nós - abortos heterossexuais - começávamos a pensar que lhes devíamos.

O grande problema de certas homossexualidades - essas: as que comprometem, as que denunciam - é que são elas (e não nós, abortos heterossexuais) que não se aceitam, que não se perdoam, que discriminam, que não sabem viver nem conviver com os muitos sexos que adoptaram, integraram ou acolheram debaixo do mesmo tecto, de uma só alma.

Arranjem-nos outra culpa, não essa. E não confundam, sobretudo, "coragem" com "chantagem", pois a rima é só fonética.
 

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