Público - 13 de Dezembro
Inquietações
Por JOSÉ MANUEL FERNANDES
A notícia vinha ontem na última página do
PÚBLICO. Na Suécia, um cidadão foi condenado
por um tribunal a pagar uma pensão de alimentos a três filhos que reconheceu
mas que, verdadeiramente, não eram seus. Ele apenas doara o esperma
para que um casal de lésbicas pudesse tê-los. Uma delas deu então à luz
três crianças e tudo parecia - parecia - bem. Até que as duas
senhoras se zangaram e separaram. O dito
cidadão, que era apenas amigo do casal de lésbicas,
que havia reconhecido as crianças apenas para que um dia lhes pudesse
ser dito que não haviam nascido de geração expontânea, viu-se então
declarado pai por um tribunal e condenado a
dar uma pensão de alimentos a três filhos
que não decidira ter, apenas ajudara a conceber.
A outra notícia também veio numa última
página do PÚBLICO, mas a semana passada.
Também envolvia um tribunal, só que francês. Este decidira pela outorga
de uma indemnização a uma criança mongolóide por esta ter... nascido.
O caso tinha outros precedentes jurídicos, mas decorreu da conjugação
da falta de fiabilidade dos sistemas de diagnóstico pré-natal - que
deveriam permitir, mas nem sempre permitem, diagnosticar no feto os casos
de trissomia 21 - com a lei francesa do aborto - que permite à mãe abortar
caso decida não ter uma criança deficiente. Como sucede que as mulheres
escolhem ser mães cada vez mais tarde, e como o risco de gerar uma tal
deficiência aumenta com a idade em que se fica grávida, o recurso a
este tipo de diagnósticos pré-natais tem
crescido exponencialmente. Agora, porém, são
os médicos que reagem: perante a hipótese de terem de vir a pagar indemnizações
em série, muitos já anunciaram que vão deixar de realizar esses
exames - o que é mau para as mães e para os filhos, mesmo para as famílias
que entendem dar a um filho deficiente o direito de nascer.
Estas duas histórias são muito distintas e
qualquer delas permitiria longas discussões
éticas, morais e jurídicas. Não é esse o objectivo deste texto, mas
apenas deixar alguma inquietação sobre o tipo de sociedades que
estamos a construir, ou mesmo onde já
estamos a viver.
Há neles um aparente ponto comum: a confusão
de valores dos seus protagonistas. Parece
existir apenas uma preocupação: viver cada vida apenas em
nome de si próprio. Decidir apenas em nome do que é mais confortável.
Pouca, ou nenhuma, atenção pelos direitos dos
mais fracos.
É como se o ideal fosse uma vida almofadada,
protegida, hedonista até ao limite, feita
só de direitos, com nenhuns deveres.
Apetece-me ter filhos mesmo não querendo formar
um casal heterossexual?
Então se me apetece, tenho esse direito. E se
tenho esse direito, e depois me zanguei com
o meu parceiro homossexual, porque não ir pedir dinheiro a quem
doou o esperma?
Não quero enfrentar o peso de, por falha de um
diagnóstico falível, criar um filho
deficiente (apesar de haver histórias maravilhosas de famílias que enfrentam
o drama de criar uma criança com o síndrome de Down), então o melhor
é garantir que então serei indemnizado: o ónus passa para o Estado.
Estas histórias são sinais. Qualquer delas
suscitou, nos seus países, paixões, por
vezes extremadas. Mas não é preciso ir tão longe para, ao lê-las,
nos sentirmos inquietos.