Público - 31 de Dezembro
Paz, Justiça e Perdão
Por MÁRIO PINTO
1. MENSAGEM DO PAPA. Todos os anos, como preparação para o dia mundial da
Paz, o Santo Padre publica uma mensagem, em que propõe uma reflexão sobre
aspectos ou problemas da paz. A mensagem para o dia 1 de Janeiro de 2002,
expressamente influenciada pelos acontecimentos de 11 de Setembro e
posterior guerra contra o terrorismo, intitula-se: "Não há paz sem
justiça, não há justiça sem perdão". Esta é, para mim, uma das mais belas
de tantas outras mensagens papais para o Dia Mundial da Paz. O título
resume a tese central da mensagem. Mas creio que é justo deixar aqui os
breves excertos seguintes.
"Não se restabelece cabalmente a ordem violada, senão conjugando
mutuamente justiça e perdão. As colunas da verdadeira paz são a justiça e
aquela forma particular de amor que é o perdão. (...) a verdadeira paz é
fruto da justiça, virtude moral e garantia legal que vela sobre o pleno
respeito de direitos e deveres e a equitativa distribuição de benefícios e
encargos. Mas, como a justiça humana é sempre frágil e imperfeita, porque
exposta como tal às limitações e aos egoísmos pessoais e de grupo, ela
deve ser exercida e de certa maneira completada com o perdão que cura as
feridas e restabelece em profundidade as relações humanas transtornadas.
Isto vale tanto para as tensões entre os indivíduos, como para as que se
verificam em âmbito mais alargado e mesmo as internacionais".
Todos aqueles, crentes ou não crentes, que sentem uma séria inquietação
sobre o problema da legitimidade da guerra, e, mais do que isso, sobre a
contínua (re)construção da paz, têm aqui um ensinamento indispensável. O
texto integral está acessível na Internet, no sítio ecclesia.pt. A não
perder.
2. SERVIÇO PÚBLICO DE TELEVISÃO. Que remédio, senão voltar ao assunto!
Quarta-feira, primeiro dia depois do Natal, perto das 10 horas da noite.
Tempo de férias. Milhares de crianças e jovens a ver televisão. O Canal 1
passa um horrível filme português, em que, entre cenas de sexo explícito,
se mostra um assassínio à caçadeira. Arte? Qual quê?! Beleza? Coisa
nenhuma! Algum valor cultural? Nenhum. Simples desígnio de apresentar sexo
e violência. O filme nem está assinalado com a "argolinha".
Em situações semelhantes, infelizmente frequentes, vou logo ver o canal
espanhol, o galego, o italiano, o francês, os ingleses, enfim todos os
canais institucionais do Cabo. Nunca encontro nada que (nem de longe) se
pareça com este lixo português. Já antes daquela hora, aliás, um canal
privado, o Sic Radical, dava pura e simplesmente pornografia. Com "argolinha".
Mas não há limites nestes negócios? E que fazem as autoridades
responsáveis? Entretanto, o Governo esforça-se por nos convencer de que
está interessado em incluir nas escolas a formação para a cidadania. E em
combater a violência sexual, especialmente sobre as crianças. E em
proporcionar aos presos, nas cadeias, condições e ambiente de dignidade e
formação. Etc., etc. Temos de acreditar nestes paradoxos?
Empresas institucionais como a RTP e a TV Cabo não podem comportar-se sem
decência. Por exemplo: o último número da revista TV Cabo, de Dezembro, é
quase só publicidade aos conteúdos eróticos e até pornográficos,
misturando Natal e sexo de uma forma afrontosa.
Como dizia o meu querido e saudoso amigo Zé Jerónimo, caseiro da Quinta do
Atalho: "Haja um deus que nos governe!".
3. SEMPRE O ENSINO. O jornal PÚBLICO (de 14/12/01) dizia-nos que o número
de estudantes de português na Extremadura espanhola aumentou quase dez
vezes em cinco anos (passou de 667, em 1996, para 6.000, em 2001). De
entre estes estudantes, contam-se médicos e enfermeiros. Perante este
fenómeno, o Governo regional andaluz e o nosso Instituto Camões vão fazer
um protocolo para aumentar os apoios. O Instituto Camões vai conceder
bolsas de estudo. Ora, tudo isso está muito bem.
Dias antes (PÚBLICO de 7-12-01), é-nos anunciado (para Portugal) um "plano
estratégico para a formação nas áreas da saúde", preparado por um Grupo de
Missão (os Grupos de Missão estão na moda; são a nova descoberta semântica
para o autoritarismo se exercer disfarçadamente). O Grupo tem o objectivo
de (lê-se) "evitar situações de carência, designadamente a nível de
enfermeiros, mas também [de] pôr um travão em formações que são já
manifestamente excessivas em relação às necessidades futuras do país, como
é o caso de Medicina Dentária".
Como se vê, um tal plano não é de desenvolvimento; é de planeamento
central de Estado. Mostrando evidente cuidado em nos documentar acerca da
endoutrinação do referido relatório, o PÚBLICO acrescenta ainda o seguinte
(que transcrevo na íntegra):
"E as cautelas justificam-se", sublinha-se no documento coordenado pelo
presidente do Grupo de Missão para a Saúde, Alberto Amaral, para os
ministérios da Educação e da Saúde. Sobretudo dada a "recente apetência de
instituições públicas e privadas, de autarcas e outros representantes do
poder local pela criação indiscriminada de novos cursos na área da saúde".
A diminuição de candidatos ao ensino superior, por um lado, e a ideia de
que estas formações têm uma "clientela assegurada", por outro, leva a que,
não raras vezes, sejam vistas como uma "tábua de salvação", nomeadamente
"pelo sector privado", alerta-se.
Ora esta! Alerta-se contra uma tábua de salvação para a iniciativa escolar
privada? Nem tábua de salvação se lhe quer deixar? É o afogamento que
portanto lhe está a ser preparado? Mas que sentido faz isto?
Vejamos. O Governo português, através dos ministérios da Saúde e da
Educação, tem limitado desde há anos a formação de médicos portugueses nas
escolas públicas - e toda a gente sabe que se enganou. Tem impedido também
a iniciativa privada de abrir cursos na área da medicina. Tem feito um
planeamento tecnocrático maltusiano.
Entretanto, em direito, onde há numerosas escolas, públicas e privadas, e
onde não há falta de licenciados, o Estado (além da recente multiplicação
desnecessária de mais cursos públicos) permite que, por exemplo, a
Faculdade de Direito de Lisboa admita no seu primeiro ano nada menos do
que 600 alunos, quase tantos como o total de admitidos em todas as
faculdades de medicina do País (945).
Interrogamo-nos: mas não há aqui incoerência? Não, não há. É que em ambos
os casos a liberdade de escolha da escola é igualmente atacada. Num caso,
em medicina, com um monopólio público. Noutro caso, em direito, perdido o
monopólio, através de uma concorrência desleal desmedida contra a escola
privada (porque o Estado só subvenciona as propinas dos alunos do ensino
público). Duas orientações contrárias, mas um só e mesmo resultado, contra
a "tábua de salvação". Coerente.
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