Portugal Diário - 14/12

«Católico, por acaso ministro»
14-12-2002 12:51
Miguel Marujo e João Vasco Almeida


ENTREVISTA A BAGÃO FÉLIX: o pensamento de um político democrata-cristão

   POLÍTICA 
No momento em que Durão Barroso e Paulo Portas chamaram Bagão Félix para o seu Executivo de coligação, o actual ministro da Segurança Social e do Trabalho preparava-se para ser reconduzido na presidência da Comissão Nacional de Justiça e Paz, uma estrutura de leigos ligada à Conferência Episcopal Portuguesa.

Bagão assume-se como democrata-cristão (numa altura em que o partido que o indicou para o Governo faz bandeira dessa ideologia) e não esquece à porta do Ministério o seu quadro de valores. Mas, lá dentro, é um governante que não é «um ministro católico. Sou ministro, ponto final. Um católico que por acaso é ministro».

Ao Portugal Diário fala com igual vigor da participação dos católicos na vida política e na defesa da família, como da sua proposta de reforma das leis laborais.

Considera família uma união de facto? Ou isso não cabe, para si, na família básica e tradicional?

Obviamente que não cabe no conceito de família tradicional.

Mas cabe num conceito de família mais lato?

Não podemos parar no tempo - elas existem! Essas situações existem, são juízos de facto. Podemos gostar mais, gostar menos, mas isso não tem qualquer interesse, elas existem.

Agora há coisas que considero importantes: a protecção e a consideração de outras formas de agrupamento familiar, digamos assim, que possam existir feitas à custa da família tradicional. E às vezes fala-se tanto das expressões minoritárias da família e esquece-se a expressão maioritária da família.

Não há nenhuma sociedade que resista à renúncia de valores superiores - e a família é um valor superior.

Não se pode fazer uma discriminação...

Pode-se fazer, mas que se discrimine negativamente. A discriminação positiva tem é limites.


E quais são esses limites?

Por exemplo, a união de facto. Não tenho nada contra a união de facto, não tenho de ter - ela existe. As pessoas devem ter liberdade de contrair casamento, religioso ou civil. A união de facto em si significa que as pessoas não querem contrair casamento. É desvalorizar a própria instituição do casamento, com os seus direitos e deveres. Que tudo isso se faça com respeito e consideração, mas não desvalorizando a própria instituição do casamento, civil ou religioso. E da própria família. Senão: "Tenho os mesmos direitos, esteja casado ou em união. Ai sim?! Então prefiro não ter as mesmas responsabilidades, prefiro estar mais livre".

Há um ponto de equilíbrio na sociedade. A adaptação da sociedade a novas formas de viver, a novas formas de educar, tudo isso faz parte da vida. Mas que não se construa, desvalorizando instituições que são fundamentais na sociedade.


E as uniões entre homossexuais? Devem ser consideradas como uniões de facto?

É uma questão muito sensível - e delicada. E creio que a minha opinião não tem importância nenhuma.

Modéstia sua.

Não, não. Mas devemos evitar ser absolutistas. A única coisa que eu posso responder aí é sobre a adopção. Aí sinto-me mais seguro: em matéria de adopção de filhos acho que não deve acontecer.

O que representa a Democracia Cristã no século XXI?

Não respondo na minha qualidade de ministro. O Governo não é democrata-cristão. Eu tenho um pensamento democrata-cristão.

A democracia cristã, entre outros aspectos, valoriza a opção preferencial pelos mais pobres, os mais desfavorecidos, procura uma justa e harmoniosa combinação entre a ideia de direito e a ideia de dever e, uma ideia que acho que é importantíssima, o princípio da subsidiariedade, onde não se parte do Estado para baixo, parte-se da pessoa e da família para cima. Quarto e último ponto: a defesa intransigente da instituição familiar.

Estes os factores fundamentais que considero que são genuinamente democrata-cristãos, mas que não são monopólio da Democracia Cristã.

Não se arvoram então na força política que representa privilegiadamente essa corrente ideológica?

A Democracia Cristã foi uma resposta para consubstanciar no plano partidário elementos da Doutrina Social da Igreja. Mas não devemos etiquetar muito - ou pôr em cacifos. Ninguém tem o monopólio da justiça social, mas todos podem contribuir para ela.

No seu livro «Do lado de cá, ao deus-dará» (ed. Sopa de Letras), há uma crítica a uma certa mentalidade jacobina que estará instalada nos nossos dias. Em que é que isto se traduz?

Em muitas coisas. É ver agora essa polémica agora a propósito da educação moral e religiosa nas escolas...

A secularização da sociedade é negativa?

A cidade é secular, no sentido da sua vida normal. Não devemos confundir duas coisas: a sociedade não é naturalmente laica. O secularismo excessivo tem, entre outras consequências, o relativismo. Hoje em dia, o que é que se passa? Relativiza-se tudo o que é absoluto, absolutiza-se tudo o que é relativo.

Do ponto de vista axiológico, tudo vale e nada vale. Essa desgradualização da relação entre as pessoas é que me parece errada.

Um católico é um cidadão de parte inteira e como tal tem direito e o dever de, comprometidamente, defender os valores que suportem enquanto leigos com a sua fé. Enquanto cidadãos. Eu costumo dizer: "Sou ministro, mas não sou ministro católico". Ponto final parágrafo. Porque não estou num estado religioso, estou num estado laico.

Mas o contrário é verdade: sou católico, que por acaso é ministro, não posso chegar ali à porta e dizer que quando entro aqui desaparece todo o meu património valorativo de uma pessoa que tem fé. Isto influencia - como influencia outras coisas, como ser benfiquista.


Como compreende a defesa da pena de morte por um dirigente popular, Pires de Lima?

Não me pronuncio sobre isso, sobre a opinião dos outros. O que posso dizer é que sou a favor da vida, em toda e qualquer circunstância. Se nós relativizamos um milímetro... É como um pequeno buraco numa barragem. Passado um ano, a barragem desapareceu.

Percebo que às vezes é difícil, dentro das nossas entranhas e da nossa alma, aceitar crimes tão hediondos, que quase parecem justificar a pena de morte. Quase! Temos uma tendência natural para isso, mas no fim há um princípio  sagrado que é o princípio da vida. Para mim, é um dom de Deus e nenhum homem pode violá-lo. Seja na barriga da mãe, seja em quaisquer circunstâncias. Este princípio é absoluto e definitivo.


Um dom de Deus, mas também uma responsabilidade do Estado?

Um Estado civilizado tem direito de defender a vida. É evidente. Como está na Constituição da República, é um preceito constitucional indiscutível. Mas, ainda a propósito do relativismo, já repararam como em Portugal ao mesmo tempo algumas pessoas defendem a liberalização do aborto, querem que se mate ou se deixe de matar, conforme os casos, um touro em Barrancos, e esperam três ou quatro semanas para que duas cegonhas saírem da barragem do Alqueva...

Perante isto tudo, só tenho um critério para não ser relativista: é a defesa da vida.

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